1. Ó Guerreiros da Taba sagrada, Ó Guerreiros da Tribo Tupi, Falam Deuses nos cantos do Piaga, Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Esta noite – era a lua já morta – Anhangá me vedava sonhar; Eis na horrível caverna, que habito, Rouca voz começou-me a chamar.
Abro os olhos, inquieto, medroso, Manitôs! Que prodígios que vi! Arde o pau de resina fumosa, Não fui eu, não fui eu, que o acendi!
Eis rebenta a meus pés um fantasma, Um fantasma de imensa extensão; Liso crânio repousa a meu lado, Feia cobra se enrosca no chão.
O meu sangue gelou-se nas veias, Todo inteiro – ossos, carnes – tremi, Frio horror me coou pelos membros, Frio vento no rosto senti.
Era feio, medonho, tremendo, Ó Guerreiros, o espectro que eu vi. Falam Deuses nos cantos do Piaga, Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!
2. Por que dormes, ó Piaga divino? Começou-me a Visão a falar, Por que dormes? O sacro instrumento De per si já começa a vibrar.
Tu não viste nos céus um negrume Toda a face do sol ofuscar; Não ouviste a coruja, de dia, Seus estrídulos torva soltar?
Tu não viste dos bosques a coma Sem aragem – vergar-se e gemer, Nem a lua de fogo entre nuvens, Qual em vestes de sangue, nascer?
E tu dormes, ó Piaga divino! E Anhangá te proíbe sonhar! E tu dormes, ó Piaga, e não sabes, E não podes augúrios cantar?!
Ouve o anúncio do horrendo fantasma, Ouve os sons do fiel Maracá; Manitôs já fugiram da Taba! Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
3. Pelas ondas do mar sem limites Basta selva, sem folhas, vem; Hartos troncos, robustos, gigantes; Vossas matas tais monstros contêm.
Traz embira dos cimos pendente – Brenha espessa de vário cipó – Dessas brenhas contêm vossas matas; Tais e quais, mas com folhas; é só!
Negro monstro os sustenta por baixo, Brancas asas abrindo ao tufão, Como um bando de cândidas garças, Que nos ares pairando – lá vão.
Oh! quem foi das entranhas das águas, O marinho arcabouço arrancar? Nossas terras demanda, fareja... Esse monstro... – o que vem cá buscar?
Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade – Dons cruéis do cruel Anhangá; Vem quebrar-vos a maça valente, Profanar Manitôs, Maracás.
Vem trazer-vos algemas pesadas, Com que a tribo Tupi vai gemer; Hão de os velhos servirem de escravos, Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!
Fugireis procurando um asilo, Triste asilo por ínvio sertão; Anhangá de prazer há de rir-se, Vendo os vossos quão poucos serão.
Vossos Deuses, ó Piaga, conjura, Susta as iras do fero Anhangá. Manitôs já fugiram da Taba, Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá! Fonte: Dias, G. 2003. I-Juca-Pirama. Os Timbiras. Outros poemas. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1846.
Sílabas. O álcool de dezembro é frio e rouco. O cigarro amarga. É um cigarro clínico. Sílabas. Com sílabas se fazem versos.
O tampo da mesa é liso. Uma colher é uma forma complexa familiar e deliciosa. Um copo é nítido como um criado sem servilismo. Uma mulher condensa-se no olhar do poeta. Um corpo. Duas sílabas. O dinheiro à justa. A gola da gabardina para tapar a nuca e os ouvidos. Sílabas. Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1960.
It’s been a long long long time, How could I ever have lost you When I loved you.
It took a long long long time Now I’m so happy I found you How I love you
So many tears I was searching, So many tears I was wasting, oh. Oh –
Now I can see you, be you How can I ever misplace you How I want you Oh I love you Your know that I need you. Ooh I love you. Fonte: encarte que acompanha os LPs do álbum duplo The Beatles (“The White Album”) (1968), dos Beatles.
E não gostavas de festa... Ó velho, que festa grande hoje te faria a gente. E teus filhos que não bebem e o que gosta de beber, em torno da mesa larga, largavam as tristes dietas, esqueciam seus fricotes, e tudo era farra honesta acabando em confidência. Ai, velho, ouvirias coisas de arrepiar teus noventa. E daí, não te assustávamos, porque, com riso na boca, e a nédia galinha, o vinho português de boa pinta, e mais o que alguém faria de mil coisas naturais e fartamente poria em mil terrinas da China, já logo te insinuávamos que era tudo brincadeira. Pois sim. Teu olho cansado, mas afeito a ler no campo uma lonjura de léguas, e na lonjura uma rês perdida no azul azul, entrava-nos alma adentro e via essa lama podre e com pesar nos fitava e com ira amaldiçoava e com doçura perdoava (perdoar é rito de pais, quando não seja de amantes). E, pois, todo nos perdoando, por dentro te regalavas de ter filhos assim... Puxa grandessíssimos safados, me saíram bem melhor que as encomendas. De resto, filho de peixe... Calavas, com agudo sobrecenho interrogavas em ti um lembrança saudosa e não de todo remota e rindo por dentro e vendo que lançaras uma ponte dos passos loucos do avô à incontinência dos netos, sabendo que toda carne aspira à degradação, mas numa via de fogo e sob um arco sexual, tossias. Hem, hem, meninos, não sejam bobos. Meninos? Uns marmanjos cinqüentões, calvos, vividos, usados, mas resguardando no peito essa alvura de garoto, essa fuga para o mato, essa gula defendida e o desejo muito simples de pedir à mãe que cosa, mais do que nossa camisa, nossa alma frouxa, rasgada... Ai, grande jantar mineiro que seria esse... Comíamos, e comer abria fome, e comida era pretexto. E nem mesmo precisávamos ter apetite, que as coisas deixavam-se espostejar, e amanhã é que eram elas. Nunca desdenhe o tutu. Vá lá mais um torresminho. E quanto ao peru? Farofa há de ser acompanhada de uma boa cachacinha, não desfazendo em cerveja, essa grande camarada. Ind’outro dia... Comer guarda tamanha importância que só o prato revele o melhor, o mais humano dos seres em sua treva? Beber é pois tão sagrado que só bebido meu mano me desata seu queixume, abrindo-me sua palma? Sorver, papar: que comida mais cheirosa, mais profunda no seu tronco luso-arábe, e que bebida mais santa que a todos nos une em um tal centímano glutão, parlapatão e bonzão! E nem falta a irmã que foi mais cedo que os outros e era rosa de nome e nascera em dia tal como o de hoje para enfeitar tua data. Seu nome sabe a camélia, e sendo uma rosa-amélia, flor muito mais delicada que qualquer das rosas-rosa, viveu bem mais que o nome, porém no íntimo claustrava a rosa esparsa. A teu lado, vê: recobrou-se-lhe o viço. Aqui sentou-se o mais velho. Tipo do manso, do sonso, não servia para padre, amava casos bandalhos; depois o tempo fez dele o que fez de qualquer um; e à medida que envelhece, vai estranhamente sendo retrato teu sem ser tu, de sorte que se o diviso de repente, sem anúncio, és tu que me reapareces noutro velho de sessenta. Este outro aqui é doutor, o bacharel da família, nas suas letras mais doutas são as escritas no sangue, ou sobre a casca das árvores. Sabe o nome da florzinha e não esquece o da fruta mais rara que se prepara no casamento genético. Mora nele a nostalgia, citadino, do ar agreste, e, camponês, do letrado. Então vira patriarca. Mais adiante vês aquele que de ti herdou a dura vontade, o duro estoicismo. Mas, não quis te repetir. Achou não valer a pena reproduzir sobre a terra o que a terra engolirá. Amou. E ama. E amará. Só não quer que seu amor seja uma prisão de dois, um contrato, entre bocejos e quatro pés de chinelo. Feroz a um breve contato, à segunda vista, seco, à terceira vista, lhano, dir-se-ia que ele tem medo de ser fatalmente humano. Dir-se-ia que ele tem raiva, mas que mel transcende a raiva, e que sábios, ardilosos recursos de se enganar quanto a si mesmo: exercita uma força que não sabe chamar-se, apenas, bondade. Esta calou-se. Não quis manter com palavras novas o colóquio subterrâneo que num sussurro percorre a gente mais desatada. Calou-se, não te aborreças. Se tanto assim a querias, algo nela ainda te quer, à maneira atravessada que é própria de nosso jeito. (Não ser feliz tudo explica.) Bem sei como são penosos esses lances de família, e discutir neste instante seria matar a festa, matando-te – não se morre uma só vez, nem de vez. Restam sempre muitas vidas para serem consumidas na razão dos desencontros de nosso sangue nos corpos por onde vai dividido. Ficam sempre muitas mortes para serem longamente reencarnadas noutro morto. Mas estamos todos vivos. E mais que vivos, alegres. Estamos todos como éramos antes de ser, e ninguém dirá que ficou faltando algum dos teus. Por exemplo: ali no canto da mesa, não por humilde, talvez por ser o rei dos vaidosos e se pelar por incômodas posições de tipo gauche, ali me vês tu. Que tal? Fica tranqüilo: trabalho. Afinal, a boa vida ficou apenas: a vida (e nem era assim tão boa e nem se fez muito má). Pois ele sou eu. Repara: tenho todos os defeitos que não farejei em ti, e nem os tenho que tinhas, quanto mais as qualidades. Não importa: sou teu filho como ser uma negativa maneira de te afirmar. Lá que brigamos, brigamos opa! que não foi brinquedo, mas os caminhos do amor, só o amor sabe trilhá-los. Tão ralo prazer te dei, nenhum talvez... ou senão, esperança de prazer, é, pode ser que te desse a neutra satisfação de alguém sentir que seu filho, de tão inútil, seria sequer um sujeito ruim. Não sou um sujeito ruim. Descansa, se o suspeitavas, mas não sou lá essas coisas. Alguns afetos recortam o meu coração chateado. Se me chateio? demais. Esse é meu mal. Não herdei de ti essa balda. Bem, não me olhes tão longo tempo, que há muitos a ver ainda. Há oito. E todos minúsculos, todos frustrados. Que flora mais triste fomos achar para ornamentos de mesa! Qual nada. De tão remotos, de tão puros e esquecidos no chão que suga e transforma, são anjos. Que luminosos! que raios de amor radiam, e em meios a vagos cristais, o cristal deles retine, reverbera a própria sombra. São anjos que se dignaram participar do banquete, alisar o tamborete, viver vida de menino. São anjos: e mal sabias que um mortal devolve a Deus algo de sua divina substância aérea e sensível, se tem um filho e se o perde. Conta: quatorze na mesa. Ou trinta? serão cinqüenta, que sei? se chegam mais outros, uma carne cada dia multiplicada, cruzada a outras carnes de amor. São cinqüenta pecadores, se pecado é ter nascido e provar, entre pecados, os que nos foram legados. A procissão de teus netos, alongando-se em bisnetos, veio pedir tua benção e comer de teu jantar. Repara um pouquinho nesta, no queixo, no olhar, no gesto, e na consciência profunda e na graça menineira, e dize, depois de tudo, se não é, entre meus erros, uma imprevista verdade. Esta é minha explicação, meu verso melhor ou único, meu tudo enchendo meu nada. Agora a mesa repleta está maior do que a casa. Falamos de boca cheia, xingamo-nos mutuamente, rimos, ai, de arrebentar, esquecemos o respeito terrível, inibidor, e toda a alegria nossa, ressecada em tantos negros bródios comemorativos (não convém lembrar agora), os gestos acumulados de efusão fraterna, atados (não convém lembrar agora), as fina-e-meigas palavras que ditas naquele tempo teriam mudado a vida (não convém mudar agora), vem tudo à mesa e se espalha qual inédita vitualha. Oh que ceia mais celeste e que gozo mais do chão! Quem preparou? que inconteste vocação de sacrifício pôs a mesa, teve os filhos? quem se apagou? quem pagou a pena deste trabalho? quem foi a mão invisível que traçou esse arabesco de flor em torno ao pudim, como se traça uma auréola? quem tem auréola? quem não a tem, pois que, sendo de ouro, cuida logo em reparti-la, e se pensa melhor faz? quem senta do lado esquerdo, assim curvada? que branca, mas que branca mais que branca tarja de cabelos brancos retira a cor das laranjas, anula o pó do café, cassa o brilho aos serafins? quem é toda luz e é branca? Decerto não pressentias como o branco pode ser uma tinta mais diversa da mesma brancura... Alvura elaborada na ausência de ti, mas ficou perfeita, concreta, fria, lunar. Como pode nossa festa ser de um só que não de dois? Os dois ora estais reunidos numa aliança bem maior que o simples elo da terra. Estais juntos nesta mesa de madeira mais de lei que qualquer lei da república. Estais acima de nós acima deste jantar para o qual vos convocamos por muito – enfim – vos querermos e, amando, nos iludirmos junto da mesa vazia. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1951.
Estamos em época de balanço. Eis aqui o nosso: o Poesia contra a guerra foi ao ar pela primeira vez em 12/10/2006 – há 421 dias, portanto. Do primeiro poema – América – até hoje foram ao ar exatamente 500 postagens (incluindo esta), o que dá uma média (um bocado trabalhosa) de quase 1,2 postagem/dia.
3. Salve, ó luz, primogênita do Empíreo, Ou coeterno fulgor do eterno Nume! Como te hei de nomear sem que te ofenda? É Deus a luz – e, em luz inacessível Tendo estado por toda a Eternidade, Esteve em ti, emanação brilhante Da brilhante incriada essência pura. Mais por ventura folgarás ouvindo Chamar-te rio fúlgido, inexausto, Manando imenso de escondida fonte? Antes que o Sol e os Céus fossem formados, Já existias tu; e à voz do Eterno Cobriste, como de um solene manto, O Mundo, assim que apareceu erguido Sobre as profundas, tenebrosas águas, Conquistado aos domínios infinitos Desse confuso turbulento Caos.
Com vôo mais audaz hoje a ti volvo Já livre do tremendo estígio lago: Campeando nesses páramos de trevas, Deles no centro e pelas orlas deles, Por muito tempo divaguei cantando, Em sons que nunca obteve Orfeu na lira, O tumulto do Caos, a noite eterna. Aventurei-me a profundar nas sombras Pela celeste Musa doutrinado: Co’o mesmo auxílio subo aos campos do éter, Custosa e rara empresa entre os humanos.
Já livre hoje a ti volvo, e já me anima De tua essência o sacrossanto influxo: Mas tu não entras mais nestes meus olhos: Por invencível sufusão tapados Rolam ansiosos com baldado anelo Procurando teus raios penetrantes, E nem sequer lhes acham o vislumbre!
Mesmo inda assim de percorrer não cesso, Movido pelo amor dos cantos sacros, Dos arvoredos a frescura umbrosa Pelas sapientes Musas freqüentados: Porém a todas, Sião, eu te prefiro Quando visito, na mudez da noite, Os flóridos ribeiros murmurantes Que a teus sagrados pés manso deslizam. Não me escapando nunca da memória Tamires e o Meônide afamados, O áugur Tirésias, e Fíneo vidente, Cegos – iguais a mim neste infortúnio, Mas que eu (oh! dor!) na glória não igualo –, Nutro-me ali de altivos pensamentos, Donde, como espontâneos, nascem, correm (Quais o mel do Hibla) deliciosos versos: Assim pousada em resguardado ramo, Cerrando-a da alta noite o manto escuro, A ave sonora cantilenas trina.
Tornam as estações girando os anos, Mas para mim não torna a luz do dia. Já não me encantam da manhã e da tarde As suaves, pinturescas perspectivas, Da primavera e do verão as flores, Nem mansas greis, nem gordos armentios, Nem o ar divino do semblante humano; E, em vez de tais belezas, me circunda Nuvem cerrada, escuridão perene Que as avenidas do saber me entupe, Mostrando-me somente, em tábua rasa, Um vácuo universal, sem cor, sem formas, Donde, para jamais me aparecerem, Da Natureza as cenas se apagaram:
Adeus, ó livros, da sapiência fontes! Adeus, ó grande livro do Universo! Mas tu, eterna luz, porção divina, Com tanta mais razão me acode e vale: Brilha em minha alma, nela olhos acende As faculdades todas lhe ilumina, E de nuvens quaisquer a desassombra, A fim que eu livremente veja e narre Cenas que à vista dos mortais se escondem. [...] Fonte: Milton, J. 2003. Paraíso Perdido. SP, Martin Claret. A obra completa consta de 12 cantos e foi originalmente publicada em 1667; o trecho acima corresponde ao início do Canto III.
Mais de 200 mil pessoas morrem vítimas de armas de fogo a cada ano em países que não estão em guerra. Em números absolutos, o ranking mundial é liderado pelo Brasil: 36 mil brasileiros foram mortos por armas de fogo em 2004, o que corresponde a uma taxa nacional de quase 100 homicídios por dia. De acordo com o Ministério da Saúde, a trajetória ascendente dos últimos anos parece, no entanto, ter mudado de direção: o total de homicídios em 2004 representaria uma queda, pela primeira vez em mais de dez anos, em relação ao total do ano anterior. Nesse caso, uma queda na casa dos 8 por cento. Ainda assim, os números são escandalosos: cerca de um em cada seis homicídios por arma de fogo praticados em todo o mundo ocorre no Brasil. [...]
A discussão atual sobre o desarmamento envolve, no entanto, alguns mal-entendidos. Um deles diz respeito ao suposto direito que cada cidadão teria de possuir ou não armas de fogo. Esse tipo de argumento tem sido exaustivamente explorado pelos defensores da comercialização. Para os ideólogos desse movimento, comprar armas de fogo e munição seria um direito individual, sujeito apenas a restrições de foro íntimo. Proibir a comercialização representaria, portanto, uma privação de direitos ou, pior, uma restrição à liberdade individual. Trocando em miúdos, proibir seria uma violência do Estado contra o livre-arbítrio de cidadãos honestos e trabalhadores.
Há mais de um problema nessa linha de argumentação, um deles de natureza conceitual: comprar não é exatamente um direito. No regime econômico em que vivemos, comprar (armas, carros, roupas, comida, casas, perfumes, chicletes etc.) é antes de tudo um privilégio. Isso é verdade não só em países como o Brasil, claro, mas em praticamente qualquer lugar do planeta, de Cabrobó do Mato Dentro a Nova Orleans, passando pelas maiores cidades do mundo e por muitos dos rincões mais isolados. Com dinheiro no bolso, qualquer um de nós consegue qualquer coisa em qualquer lugar do mundo; é possível, por exemplo, tomar chá em xícaras de porcelana chinesa em pleno sol saariano ou no quarto de um hotel de quinta categoria em Nova Déli. Nem por isso, entretanto, julgo que estejamos dispostos a considerar o fato de alguém poder ou não alugar o quarto de um hotel ou tomar chá importado como exemplos de direitos individuais inalienáveis. Não deveríamos, portanto, falar em restrição aos direitos ou à liberdade individual com a impertinência que esse pessoal a favor da comercialização anda fazendo. Misturar o direito (universal) à integridade e ao bem-estar físico e mental com o poder de compra ou a posse de bens e serviços é, na melhor das hipóteses, uma artimanha ideológica. No caso específico do comércio de armas de fogo, trata-se muito mais de uma propaganda oportunista elaborada pelos seus ideólogos e marqueteiros (no meio dessa gente, é bom notar, muitos já falam abertamente em aprovar também a pena de morte e, assim, consertar de vez a sociedade brasileira...)
Um segundo ingrediente dessa discussão envolve elementos mais sociológicos, como a questão da segurança pública. Ter armas de fogo em casa de algum modo aumenta o grau de segurança do proprietário e sua família? Contra exatamente que tipo de ameaça, o bicho-papão, ladrões de galinha ou criminosos sanguinários? Ao que tudo indica, a posse de armas de fogo em pouco ou nada interfere no grau de segurança do proprietário e seus familiares frente às ameaças mais belicosas. Ao contrário, muitos relatos apontam em direção oposta: a posse de armas de fogo tornaria o proprietário e sua família mais expostos e vulneráveis ao perigo. Não são poucas, por exemplo, as tragédias evitáveis envolvendo o uso de armas em acidentes ou brigas domésticas. [...] Fonte: artigo originalmente publicado em La Insignia. Segundo o Ministério da Saúde, em 2004 foram mortos 37,1 mil brasileiros por armas de fogo; em 2005, foram 36 mil e em 2006, 34,6 mil.
Em Worcester, Massachusetts, fui com minha Tia Consuelo à sua consulta com o dentista e sentei e esperei por ela na sala de espera do dentista. Era inverno. Bem cedo escurecia. A sala de espera estava cheia de adultos, manteaux e sobretudos, abat-jours e revistas. Fazia muito tempo que lá dentro estava minha tia, ou isto ao menos pensei. Enquanto esperava lia a National Geographic (eu já sabia ler) e com cuidado estudava as fotografias: o interior de um vulcão, negro, cheio de cinzas; súbito ele cuspia por mil rios de fogo. Osa e Martin Johnson vestidos com capacetes, culotes e botas de laço. Um homem morto pendido de uma haste – “Nem Um Pio”, dizia o cabeçalho. Bebês com as cabeças em ponta, enroladas por voltas e voltas de uma corda; negras desnudas, com pescoços enrolados por voltas e voltas de arames como os pescoços das lâmpadas elétricas. Seus peitos eram horripilantes. Li o artigo de ponta a ponta. Era demasiado tímida para parar. Então olhei a capa: as margens amarelas, a data. De repente, lá de dentro veio um oh! de dor – era a voz de Tia Consuelo – nem alto nem prolongado. Não me surpreendi; já então sabia que se tratava de uma mulher tímida e tonta. Eu podia ter ficado sem jeito, mas não fiquei. Minha surpresa total foi perceber que era eu: minha voz, minha boca. Completamente sem pensá-lo eu era a tonta de minha tia, e eu – nós – estávamos caindo, caindo, nossos olhos colados à capa da National Geographic, número de fevereiro de 1918.
Disse-me a mim mesma: em três dias você terá sete anos de idade. Repetia isto para cessar a sensação de cair fora do chão, que transformava o mundo num espaço frio, azul escuro. Porém entendi: você é um Eu, é uma Elizabeth, você é um deles. Por que não seria um, você também? Eu mal podia olhar para conferir o que é que eu também era. Dei uma olhada de viés – não podia fazê-lo de frente – nos joelhos acinzentados, calças e saias e botas e pares de mãos diferentes que os abat-jours iluminavam de cima. Eu sabia que nada estranho tinha passado, que de estranho nada jamais passaria. Por que seria eu Tia Consuelo, ou eu mesma, ou um alguém qualquer? Que semelhanças – botas, mãos, a voz da família na garganta sentida, ou até a National Geographic e aqueles horrorosos seios caídos – nos mantinham juntos ou nos faziam ser um apenas? Como tão – eu não conhecia a palavra adequada – tão “despropositadamente”... viera eu parar ali, como eles, para ouvir forte demais um grito de dor que podia ter sido mais forte e pior mas não fora?
A sala de espera estava cheia de luz e calor. Eu escorregava detrás de uma onda negra e enorme, e de outra, de mais outra.
De repente eu estava de volta à sala. A Guerra seguia. Lá fora, em Worcester, Massachusetts, havia noite e neve aguada e frio, e ainda era o dia cinco de fevereiro, 1918. Fonte: Bishop, E. 1990. Poesias. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1976.
Nos kakimonos, de papel pintado, Os dragões saltam, riem as carrancas, E entre as nuvens do fundo acobreado Os deuses montam em cegonhas brancas.
Sobre as lacas polidas, luzidias, Há figuras, marfim de alto-relevo, Finas silhuetas de mulheres esguias, Sorrindo aos deuses num profundo enlevo.
Na sua luz mortiça, vão ardendo As lamparinas clássicas, chinesas. Nos cachimbos o ópio vai fervendo Ao contacto das lâmpadas acesas.
Nas esteiras, em lânguido abandono, Adormecem já os fumadores. Vencidos pelo poder fatal do sono Esqueceram da vida os dissabores.
Corpos que pelo ópio emagrecidos Se perdem nas cabaias de cetim. Contornos vagos, rostos abatidos Da cor da cera virgem, do marfim.
Vede-os dormir! Que imensa placidez Nas suas faces quietas e paradas! Mas, sonham. Através da palidez Das pálpebras sombrias, maceradas,
O sonho adeja em louca fantasia: Miragem de além-mar, países raros, Glória, poder, riqueza, soberania, Mulheres de olhos negros, de olhos claros...
Em taça de cristal vinho de rosas. Brancas magnólias, lírios perfumados. Sobre as águas, em noites misteriosas, Juncos, de prata e oiro carregados.
Inertes vão sonhando os orientais... O ópio, que os domina e que os subjuga, Sobe nos ares, em ténues espirais, Dos cachimbos de jade e tartaruga...
E pelas altas paredes, que o exotismo Vestiu de seda, cobriu de oiro velho, Bailam sombras, visões do paganismo, À luz quebrada de um lampião vermelho! Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1925.
Em minha sepultura, Ó meu amor, não plantes Nem cipreste nem rosas; Nem tristemente cantes. Sê como a erva dos túmulos Que o orvalho umedece. E se quiseres, lembra-te; Se quiseres, esquece.
Eu, não verei as sombras Quando a tarde baixar; Não ouvirei de noite O rouxinol cantar. Sonhando em meu crepúsculo, Sem sentir, sem sofrer, Talvez possa lembrar-me, Talvez possa esquecer. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1862
A mulher menstruada foi muitas vezes vilipendiada, temida, olhada com comiseração, ou banida do povoado para passar seus dias sangrentos em solidão. Até a clássica explicação médica tem o sentido de perda. A mulher sangra todos os meses, diz a história, como uma maneira de descartar seu óvulo não-fecundado e a camada uterina que havia sido otimistamente aumentada para receber o bebê que nunca chegou. [...]
[...] Uma bióloga [evolucionista] propôs uma nova e radical maneira de ver a menstruação, que dá um rumo dinâmico e saudável ao ato sujo de ficar menstruada. Margie Profet [...] afirma que a menstruação surgiu [... ] como um mecanismo para proteger o útero e as trompas de Falópio contra os micróbios nocivos trazidos pelos espermatozóides.
De acordo com essa versão, o útero é extremamente vulnerável às bactérias e aos vírus que podem estar pegando carona com o esperma, e a menstruação é uma maneira agressiva de evitar infecções que podem provocar esterilidade, doenças e até mesmo a morte. Na menstruação, declara Profet, o corpo ataca de duas maneiras os imigrantes potenciais: dissolve a camada que reveste o interior do útero, onde os patógenos podem estar passando o tempo, e banha a área em sangue, que traz células imunológicas para destruir os micróbios. Desta maneira, os patógenos e seu alojamento são destruídos ao mesmo tempo.
A teoria de Profet tenta responder à simples questão de por que o corpo das mulheres, antes da menopausa, se dá ao trabalho de desperdiçar quantidades consideráveis de sangue e tecido a cada mês, perdendo ferro e outros nutrientes valiosos, durante o processo. Por que não manter essa camada uterina até que o bebê precise dela? Por que jogar fora a água do banho se o bebê ainda nem foi lavado? E mesmo que o revestimento precise ser descartado, por que o sangramento copioso? Afinal, o revestimento do trato digestivo é regenerado a cada dois ou quatro dias, a pele perde dezenas de milhares de células todo dia e outros órgãos são renovados e reparados, tudo sem ajuda do sangue. Em suma, a menstruação é um evento custoso para a fêmea, e Profet propõe que não aconteceria se não tivesse um objetivo importante. Fonte: Angier, N. 1998. A beleza da fera. RJ, Rocco.
Nau parada de pedra que tanto navega e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar nau só a ocidente e todo o mar em frente condensada insolência intemerato desafio a mundos devassados mas desconhecidos corvos de água e de vento aves feitas de tempo que tão completamente são dois olhos côncavos e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente nave que sulca não as águas mas os dias navio de carreira entre o tempo e a eternidade num espaço onde um simples segundo tem a minha idade pedra que só aqui se liquefaz água que só aqui solidifica cais quente coração de corvos vistos por quem nunca antes vira a solidão caber em tão poucos centímetros quadrados do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar ó nau navio corvos pedra água cais aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás Aqui nada decorre e nada permanece aqui os corvos são a solidão multiplicada consistente conglomerada mas estilhaçada unificada mas feita em bocados De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água sai uma voz vasto discurso cada vez Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo Nesta nau se efectua esse comércio secular da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar A névoa envolve e como que enovela os corvos a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto donde em cada momento sai um corvo aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo O moreira baptista decerto gostaria que os corvos se não os palradores os que ganham prémios literários pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos poisassem sempre no mais alto do rochedo mas quando no inverno sopra o vento norte e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul e estão-se marimbando para a propaganda de um país vendido que eles não compraram eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis o infinito aqui começa a acabar em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível nem assim se define o que não tem definição Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça até que a prostração mais funda no total desapareça Permite ó nau petrificar aqui a minha sensação mais passageira ou o meu mais instável pensamento Eu nunca até agora e já sou velho vi quebrar assim o tempo como quebra em ti Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos feitos tanto de tempo como de água finalmente me fosse lícito fechar definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar não conseguem optar entre a pedra e o mar E só agora findas as palavras eu pressinto pela primeira vez haver algum poema por detrás do poema pura coisa de palavras Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1973.
Manhã, claro jardim de antiga renda vegetal mantida em grades de onde outrora o mar se via; manhã filtrada nos cabelos de tua mulher, ô meu poeta, que deitada sobre um passado grego ainda não sabe se vai, se jamais foi à missa.
Tudo é manhã no teu poema de inverno onde o sol é apenas uma memória de sol, saudade dele; os canários verdes; o robe entreaberto, por onde uma cadência de pernas ressoa em acordes mornoquentes.
Tua imaginação ou tua vizinha, eis que no corpo dela algo ainda dorme na manhã alta.
Não em ti, que a vês ou pensas e de tua velhice desperta descobres o amor entre duas ou três invenções sonolentas e jovens: a tumba no vale e seu antagonista, o cômoro, a complacência do robe e umas lembranças de Deus. Fonte: Wanderley, J. 2001. Antologia poética. SP, Ateliê Editorial. Poema originalmente publicado em 1980. Para ler o poema de Wallace Stevens, clique aqui.
O que está por trás do poema e da poesia do poema é o homem e sua vida sua sobrevida sua suada subvida o homem e suas circunstâncias plantado no espaço no tempo que vai passando O homem e suas (in)finitudes um olhar breve – e vão um apito – longo – de locomotiva um passeio à tarde – de bonde Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1972.
Nesta quarta-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completou um ano e dois meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 24.164 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Treze meses no ar – ocorreram em média 94,3 visitas/dia.
Nesse período, foram ao ar textos dos seguintes autores: Ana Paula Tavares, António Nobre, Artur Azevedo, Carole King, David Mourão-Ferreira, Desmond Morris, Eduardo Alves da Costa, Emílio Moura, Fiama Hesse Pais Brandão, Francisco Alvim, Gerardo Mello Mourão, Herberto Helder, Jack Cohen, Jacob Grimm, Joan Roughgarden, Leon Tolstói, Luiz Tatit, Mário Faustino, Pablo Antonio Cuadra e Wilhelm Grimm. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Annibale Carracci, Arkady Rylov, Mikhail Vrubel, William Holman Hunt e William Turner.
Não conseguiu firmar o nobre pacto Entre o cosmos sangrento e a alma pura. Porém, não se dobrou perante o facto Da vitória do caos sobre a vontade Augusta de ordenar a criatura Ao menos: luz ao sul da tempestade. Gladiador defunto mas intacto (Tanta violência, mas tanta ternura)
Jogou-se contra um mar de sofrimentos Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim Para afirmar-se além de seus tormentos De monstros cegos contra um só delfim, Frágil porém vidente, morto ao som De vagas de verdade e de loucura. Bateu-se delicado e fino, com Tanta violência, mas tanta ternura!
Cruel foi teu triunfo, torpe mar. Celebrara-te tanto, te adorava Do fundo atroz à superfície, altar De seus deuses solares – tanto amava Teu dorso cavalgado de tortura! Com que fervor enfim te penetrou No mergulho fatal com que mostrou Tanta violência, mas tanta ternura!
Envoi
Senhor, que perdão tem o meu amigo Por tão clara aventura, mas tão dura? Não está mais comigo. Nem contigo: Tanta violência. Mas tanta ternura. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1955. Ao título, segue-se a frase: “Em memória de um poeta suicida”.
Observe uma mosca. Não, não basta pensar nela. Encontre uma mosca de verdade e examine-a. Veja suas perninhas correrem num ritmo perfeito, sua pequena cabeça girar, observando os acontecimentos. Observe-a decolar: num momento ela está parada, e a seguir está no ar, zunindo pelos arredores sem trombar em nada. Se puder, assista à sua aterrissagem. É a parte mais impressionante: ela acelera na direção de uma parede, se inclina, freia e... Lá está ela na superfície, totalmente serena, limpando sua tromba com as pernas dianteiras. De onde vem toda essa maquinaria de uma precisão tão bela?
Como é que essa mosca, esse indivíduo, surgiu? Veio do ovo de uma mosca, você diz. Mais ou menos. Veio de uma larva, e a larva saiu de um ovo. Estamos tão acostumados com coisas complicadas saindo de ovos, que isso nos parece uma explicação. Pintinhos fofos saem de ovos um tanto insípidos, botados (é claro) pela galinha. Basta dar um pouco de calor. Você veio de um ovo, também.
Ovos são estruturas biológicas pouco complicadas. Comparados ao que sai deles, são realmente muito simples. No ovo de uma galinha fértil, as dúzias de células sobre a gema, a partir das quais o pintinho se originará, não são nem um pouco especiais quando comparadas a um pedaço do cérebro do pintinho, ao seu rim ou mesmo à sua pele. Uma pena em crescimento é, pelos nossos critérios de medição, mais complexa do que as células a partir das quais os pintinhos inteiro se origina. Como isso é possível? Como pode a complexidade surgir da simplicidade? Haverá um “princípio organizador”, um “espírito da vida”? [...] Fonte: Brockman, J & Matson, K., orgs. 1997. As coisas são assim. SP, Companhia das Letras.
Cresce comigo o boi com que me vão trocar Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência O sono profundo de deserto,
a falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore a efervescência o desejo a intranqüilidade a proximidade do mar
Filha de Huco Com a sua primeira esposa Uma vaca sagrada, concedeu-me o favor das suas tetas úberes Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1985.
6. Ivan Ilitch via que estava morrendo e sentia-se constantemente desesperado. No fundo da alma sabia bem que estava morrendo; mas não só não conseguia habituar-se a essa idéia, como não a compreendia mesmo – era incapaz de compreendê-la.
O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de lógica de Kieseweter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal – encerrava um raciocínio que lhe parecia exato em se tratando de Caio, mas não da sua própria pessoa. Caio era um homem em geral e devia morrer. Ele, porém, não era Caio, não era um homem em geral; era um homem à parte, inteiramente à parte dos outros seres: ele era Vania, com sua mamãe e seu papai, com Mítia e Volódia, com seus brinquedos, com sua pajem, com o cocheiro, depois com Kátenka, com todas as alegrias, todas as tristezas, todos os entusiasmos da infância, da adolescência, da juventude. Acaso conhecia Caio o cheiro daquela bola de couro listrada de que Vânia tanto gostava? Beijava Caio a mão de sua mãe como Vania? Era para Caio que a saia de seda da mãe de Vania fazia o seu doce frufru? Fora Caio quem protestara, na escola, por causa dos pasteizinhos? Tinha ele amado como Vânia? Seria Caio capaz de presidir, como ele, uma audiência?
Caio é de fato mortal e é justo que morra. Mas eu, Vania, Ivan Ilitch, com todas as minhas idéias, com todos os meu sentimentos – isso é coisa inteiramente diversa. E é impossível que eu tenha que morrer. Seria por demais horrível.
Assim sentia ele. [...] Fonte: Tolstói, L. 2007. A morte de Ivan Ilitch/Senhores e servos. SP, Martin Claret. Obra originalemnte publicada em 1886.
Pelas restingas perigosas levávamos tudo bem olhado e sondado quando surgiram as sete naus francesas a buscar mulheres e gados a França: fugindo delas e dos mares que me comiam, saí a umas terras – tudo quanto se pode imaginar de temperadas e boas de muitas águas vivas e muitas e grandes madeiras e este ano para mim todo foram descobrimentos navegando por dentro das bahias, correndo aloeste um dia um navio pirata de dezoito peças de artelheria com que pelejei me matou toda a gente, que foram dezenove homens não ficando mais que três e um menino todo em pedaços e eu fiquei com vinte e três feridas, com uma das mãos cortada e uma cutilada no rosto e preso em terra estrangeira os capitães covardes pediam minha morte por ser eu da raça dos que descobriram o mundo e a possessão das terras – e vieram mulheres de Dieppe intrigar contra minha cabeça os capitães que a meu rei não servem – e de seus alcouces polacas mal paridas e megeras em fúria esses cães açularam: e os que estamos a serviço de descobrir e possuir a terra freqüentamos a morte.
Atestado de óbito – cartório de Sobral, 4 de novembro de 1856: “– o Coronel João Bento de Albuquerque, branco, viúvo, de 70 anos, morador no Sítio Algodões, faleceu nesta data por desgraça de eleições e era gente dos Mourões” e por outras desgraças por desgraça e por graça de amor é nosso exercício a gentileza da morte – e este é o punhal de Vicente Gomes Parente e pendurado entre o Goethe e o Shakespeare sua bravata goteja sobre a estante o fantasma de suas punhaladas: “I am not so sexy as to like blood” – ouvira Meyer-Clason – e a condessa sorria entre a pistola do conde e o rosto pálido do aventureiro russo e não houve sangue e já não era em Veneza o caminho da Grécia: por um rastro de sangue trago notícias da Grécia e meu tetravô ocupava o mundo e ensinava a partir e chegar da viva morte e morava no lombo de seu cavalo alazão e o chão em que se erguia não lograria ser mais vasto que as patas de seu cavalo – e na garupa levava sempre o par de alforjes de couro e nos alforjes lençol de linho e manta de cochonilha e um frasco de alfazema do monte: em toda estrada há sempre uma serrana e sempre a caminho do amor – e por ali é o caminho da Grécia: nem se despeça dele o coração do peregrino – e para a bem-amada rescenda sempre o macho nos lençóis de linho à alfazema do monte: assim Lancelote da Franca na guerra da Bahia à frente de seu terço de soldados em sua armadura fulgurante saía a combater o bátavo os cabelos e o corpo banhados de perfume e o hebreu Antônio Dias Paparobalos se vendeu ao holandês e os urubus da Bahia recusaram o pasto de seu corpo entre a carniça de portelas raposos e batistas e a tríade de súcubos insepultos: as raparigas desejavam o corpo de Lancelote da Franca com a senhora Morte era galante – e assim corresse seu sangue entre perfumes Claudenor: com três cabras armados invadiu a casa de Otávio Aires e carregou a filha mais moça galope ao vento da estrada de Limoeiro no cio da madrugada: – sempre sonhei ser raptada em teu cavalo – de Arapiraca a Porto Real podem beber de graça em todas as tabernas e disparar as pistolas no caminho e era entre os canaviais da várzea cheiro de pólvora cheiro de folhas e cheiro do suor dos cavalos excitados ao cheiro da semente humana – e Laura Laura Nogueira — sou eu, my dear, vim desde o norte para te ver posso ficar três dias, meu marido me espera na próxima semana, no quinto dia o avião da Panair se espedaçava entre Pernambuco e Ceará e entre os destroços havia um brinco de ouro numa orelha mordida e o fogo poupara os cabelos à la garçonne os olhos cinza e o coração boiando sobre os dilacerados seios e o coração cercado de chamas Cor Jesu, o Padre Mateo, o Padre Vicente, o Padre Smithuis de voz melodiosa na noite de Congonhas Cor Jesu, fornalha ardente de amor, miserere nobis – e o coração cercado de labaredas e o êxtase de Margarida Maria Alacoque: moreno dois olhos negros que parecia um Mourão desses que descem a serra de perneiras e gibão com uma rosa no peito e uma viola na mão: é dia de dança e festa da Virgem da Conceição: pegou francesa branca e mostrou-lhe o coração – ai, gigolôs arrastando débeis fêmeas pela mão – ficou a francesa branca mais branca do que algodão e Jesus de Nazaré a carregou do salão e em Paray-Monial rolaram flores no chão quando a louca Margarida na desvairada paixão nas mesmas chamas do dEle acendeu seu coração: ai, Jesus das Ipueiras ai, Margarida Mourão!
E súbito Araci recorta os hinos, Maldonado, os hinos de Araci de Almeida – e os dedos do poeta dedilhavam as grades da prisão – e o sal das lágrimas das fêmeas lhe temperava a boca: c’est moi, Mylène, mon chéri, venue do Porto Alegre pour te voir – e em Porto Alegre Aída matou o gigolô na Casa Verde com cinco tiros de um revólver Taurus e Laura Martinez abriu uma loja de flores – não, Laura Nogueira entre Pernambuco e Ceará loja de prantos loja de corações, pois nem o fogo os destrói, y tengo, Fleifãs neste bairro de putas de Buenos Aires o coração hecho pedazos. Silvinha – lembras – desatou o fecho-éclair do blue-jeans e fez amor todas fazem amor, querido, mas não em madrugada de chuva no cemitério sobre o túmulo do avô com Manuelito Porto – e os mortos dormem entre seus cravos amarelos e a semente da morte – a morte dorme na relva de suas coxas no túmulo de sua mãe: Gilena se deitou com o francês do bar quem faz o amor, quem faz a morte? ninguém faz nada desde aquele tempo e as velhas sabem ruminar e moer na memória memórias de amor e morte – e caminham castas para o cemitério e sobre suas louzas, os blue-jeans arriados Silvinha e Manuelito e Gilena e o francês do bar – Dominique, voilà – e uma tarde sentarei meus filhos em meus joelhos para fazer o que sei: contar histórias de amor e morte e sei o caminho da Grécia e o caminho da sepultura e ali sobre os ossos de Apolo farei amor contigo, amada, e macho e touro e Mourão te escreverei no ventre um nome. Fonte: Mourão, G. M. 1980. Os peãs. SP & Brasília, GRD & INL.
Só grilos desafinados povoam a solidão. Pastor de almas de soldados, sigo nos campos lavrados, sem ouvir o coração. Se o ouvisse, que ouviria? Alegria? Certo, não.
Sem palavras e sem gestos, pisando estevas e trigos, nestes caminhos funestos alimento-me dos restos do passado que persigo. (E nem sequer receamos, entre os ramos, o inimigo.)
Sob céus de Primavera, por entre olivais de prata, seguimos... e quem nos dera que a nossa febre esquecera quem de nós nos arrebata! Não são ’stranhos que tememos. Bem sabemos quem nos mata.
Que destino tão errado, o que haviam de me impor! Pastor a soldo forçado de um gado que não é gado, nem precisa de pastor! E vamos!, vidas marcadas p’las espadas do terror.
“Maldito seja quem faz profissão da nossa morte! Quem ordena, lá de trás, em segurança, na paz que injustamente o conforte!” (Mudos embora, este grito fica dito desta sorte.)
E vamos, como ciganos, mas sem nenhuma aventura. Seguem, atrás, os garranos, pacientes, quase humanos, a moer a terra dura. – E segredam-nos os ventos que estes tempos são loucura.
À sombra de um castanheiro, eis que paramos, cansados, para instalar um morteiro que faça fogo certeiro sobre outros, sobre outros gados – inocentes como o nosso, mas que um fosso fez danados!
Nenhuma ordem nos chega. Ainda bem! Inda bem! – E, cegos, na noite cega, cada corpo é uma entrega a calma que lhe convém. Até o vento, mais brando, vem sonhando com alguém...
... E sonha então cada qual com as pastoras distantes... Uma zagala, um zagal... No recanto de um pinhal, promessas exuberantes... (Anda sempre a mesma história na memória dos amantes!)
Se o dia há-de ser de luta, que a noite não tenha fim! Ao menos quem quer desfruta a placidez impoluta de um primitivo jardim. E se mais nos não concedem, se é esse o preço que pedem, seja assim! Fonte: Mourão-Ferreira, D. 1980. Obra poética, vol. I. Lisboa. Bertrand. Poema dedicado “A José Régio”.
1. Complacência de penhoar, café E laranjas ao sol das onze horas, Verde indolência de uma cacatua No tapete – isso ajuda a dissipar O santo silêncio do sacrifício. Mas ela sonha, e sente aproximar-se, Escura e lenta, a catástrofe antiga, Como o descer da noite sobre as águas. O odor das frutas, o brilho de asas verdes Virão talvez da procissão dos mortos, Que atravessa as águas, silenciosa. Aquietou-se para dar passagem A seus pés sonhadores sobre os mares A Terra Santa de sangue e sepulcro.
2. Por que legar aos mortos o que é seu? O que é o divino, se se manifesta Somente em sonhos, sombras silenciosas? Por que não encontrar prazer no sol, No odor das frutas, brilho de asas verdes, Em qualquer outro bálsamo terreno, Tão caro quanto o próprio paraíso? É nela que o divino há de viver: Paixões chuvosas, cismas de nevascas, Negras solidões, gozos incontidos Quando a floresta se abre em flor; lufadas De emoção em noites frescas de outono; Toda dor e delícia; gordos ramos De verão, galhos desnudos de inverno. Estes, os ritmos próprios de sua alma.
3. Nas nuvens nasceu Jove, o não-humano, Que mãe não aleitou, e em relva fresca Com passos divinais jamais pisou. Caminhou entre nós, um rei absorto, Magnífico, portento entre os humildes, Até que sangue humano e virginal Mesclou-se ao céu, anseio tão intenso Que o viram os mais humildes, numa estrela. Quem sabe nosso sangue ainda virá A ser do paraíso? Será a terra O único paraíso possível? O céu ainda será nosso aliado, Na dor e no cansaço, quase igual Em glória ao próprio amor imorredouro, Não mais um muro indiferente e azul.
4. Diz ela: “Quando os pássaros questionam Com cantos matinais a realidade Dos campos enevoados, sou feliz; Mas quando vão-se embora, e vai-se junto Toda a paisagem, onde o paraíso?”. Não há nenhuma negra profecia, Não há quimera sepulcral tampouco, Nem ilha melodiosa, habitada Por espíritos, nem doce eldorado No sul, nem palmeira em longínqua névoa De outeiro no céu, que perdure mais Do que o verdor da primavera, mais Que a lembrança de uma manhã com pássaros, Ou um desejo de tarde de verão Consumada em asas de andorinhas.
5. Diz ela: “Ainda assim, sei que preciso De alguma alegria imperecível”. A morte é a mãe do belo, e só a morte Satisfaz nossos sonhos e desejos. Ainda que ela espalhe as folhas secas Do aniquilamento a nossa frente Pelo caminho da dor, pelos muitos Caminhos onde exultou a vitória, Ou onde o amor sussurrou sua ternura, Faz o salgueiro estremecer ao sol, Para moças que antes sonhavam na relva E agora se levantam. Faz rapazes Juntarem maçãs e ameixas novas Num prato esquecido. As moças provam, E apaixonadas andam sobre folhas.
6. Não haverá morte no paraíso? Não cairá a fruta madura? Os galhos Hão de ficar para sempre carregados Naquele céu perfeito e imutável, E ao mesmo tempo semelhante ao mundo Mortal, com rios que buscam sempre mares Que nunca hão de tocar com lábios mudos? De que servem as maças nessas margens? Por que adoçar com ameixas aquelas praias? Que triste, lá brilharem nossas cores, Tecer-se a seda de nossas manhãs, Soarem nossos violões insípidos! A morte é a mãe de todo o belo, mística, E no seu seio cálido sonhamos A mãe terrena, insone, a nossa espera.
7. Homens ágeis e alegres, de mãos dadas, Numa manhã de verão, em plena orgia, Hão de cantar em devoção ao sol, Não como deus, mas como um deus seria, Nu entre eles, uma fonte bárbara. E seu canto há de ser paradisíaco, Saído do seu sangue para o céu; E em seu canto entrará, em cada voz, O lago que deleita o seu senhor, As árvores seráficas, e os montes Por muito tempo a repetir sua música. Conhecerão a sagrada irmandade De homens mortais e estivais manhãs. E de onde vieram, e para onde irão, O orvalho em seu pés indicará.
8. Ela ouve, nas águas silenciosas, Uma voz gritar: “O Santo Sepulcro Não é alpendre onde repousem espíritos, É o túmulo onde jazeu Jesus”. Vivemos nesse velho caos de sol, Ou velha servidão de noite e dia, Ou solidão de ilha, livre e solta, De águas silenciosas e implacáveis. Cervos andam pelos montes; codornas Assobiam, espontâneas; e nas matas Amoras silvestres amadurecem. E, no isolamento do azul, Ao entardecer, pombas revoam a esmo, Fazendo ondulações ambíguas, vagas, Em direção à sombra, com suas asas. Fonte: Stevens, W. 1987. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1923.