Entre rios e cascalhos nasceu. No berço das águas cinco estrelas claras.
Ó infante, depressa, as margaridas te esperam para a ciranda, madrinha lua te espera para as vigílias.
Pejavam-se as nuvens, as nuvens fugiam, cruzavam as tardes borboletas lentas. Na sombra, setas oblíquas.
Antônia da Encarnação Xavier, não deixes teu menino crescer. Ele não terá pouso certo, será chamado o corta-vento, exalará o hálito da revolta, perecerá de morte infamante.
Talos e vergônteas ríspidas cresciam. Seivosas touceiras com frutos cresciam.
Mãe morta. Pai morto. Campo limpo. O caminho do louco está livre. A terra pertence ao louco, a terra é um punhado de poeira na palma da mão do louco, por entre abismos levita o louco, as serras são trabalhadas pelo louco, os rios são dirigidos pelo louco, a imagem da Santíssima Trindade acena ao louco, a brasa de Isaías queima os lábios do louco, vai pelo mundo o louco apregoando a verdade!
As verdades como pedras chovem pelo monte abaixo. Cravejada de sementes ergue-se a planície grávida.
Veio a tempestade, o incêndio, a derrubada dos troncos. Vai-se consumando aos poucos o holocausto do cordeiro:
– Agora sei. Nenhum pouso me prometia sossego. As paredes da masmorra não me poderão conter.
Nos socavões e nas grotas dorme o ouro da madrugada. Minhas algemas são de ouro para servirem de aldrava.
Sinos de cristal ardente acordarão a distância “com os fios desse enredo para daqui a cem anos.”
Céu azul, vejo-te ainda nas orvalhadas da noite através da pura gota que meus olhos chorariam.
Do roxo de minhas pálpebras não tarda a nascer a rosa em cujo pequeno cálix mal cabe o meu sangue todo.
Aurora da cor do sangue, quantas rosas eu não dera para que raiasses antes que meu suspiro morresse. Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1952.
1. Quando o Sr. Bilbo Bolseiro de Bolsão anunciou que em breve celebraria o seu onzentésimo primeiro aniversário com uma festa de especial grandeza, houve muito comentário e agitação na Vila dos Hobbits.
Bilbo era muito rico e muito peculiar, e tinha sido a atração do Condado por sessenta anos, desde seu notável desaparecimento e inesperado retorno. As riquezas trazidas de suas viagens tinham agora se transformado numa lenda local, e popularmente se acreditava que a Colina em Bolsão estava cheia de túneis recheados com tesouros. E se isso não fosse o suficiente para se ter fama, havia também seu vigor prolongado que maravilhava as pessoas. O tempo passava, mas parecia ter pouco efeito sobre o Sr. Bolseiro. Aos noventa anos, parecia ter cinqüenta. Aos noventa e nove, começaram a chamá-lo de bem-conservado, mas inalterado ficaria mais próximo da realidade. Havia pessoas que balançavam a cabeça e pensavam que isso era bom demais; parecia muito injusto que qualquer pessoa possuísse (aparentemente) a juventude perpétua, além de (supostamente) uma riqueza inexaurível. – Isso terá seu preço – diziam eles. – Não é natural e trará problemas. [...] Fonte: Tolkien, J. R. R. 2000 [1954]. O Senhor dos Anéis: Parte I. A Sociedade do Anel, 2ª edição. SP, Martins Fontes.
Carregado de fogo o corpo instala- -se nas linhas de tiro desferindo balas e despedindo-se ou isolando o amor
corpo instalado em linhas tensas de solidão linhas de tiro tenso aonde o corpo vive e
vive o tenso vestígio do amor carregado de fogo o corpo vive de tiro tenso e tensa solidão
em linhas instalado desferindo balas e atingido Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1969.
No meio do expediente de ontem, terça-feira, o Poesia contra a guerra superou a marca das 30 mil visitas. Do balanço numérico anterior – ver “Vinte mil visitas”, em 31/10/2007 – até ontem (25/3) ocorreram em média pouco mais de 68 visitas/dia. O recorde positivo de visitantes únicos em um só dia continua igual a 163, obtido em 22/10/2007.
Bom é ser árvore, vento, sua grandeza inconsciente; e não pensar, não temer, ser, apenas: altamente.
Permanecer uno e sempre só e alheio à própria sorte, com o mesmo rosto tranqüilo diante da vida ou da morte. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1975.
It’s a mighty hard row that my poor hands have hoed My poor feet have traveled a hot dusty road Out of your Dust Bowl and Westward we rolled And your deserts were hot and your mountains were cold
I worked in your orchards of peaches and prunes I slept on the ground in the light of the moon On the edge of the city you’ll see us and then We come with the dust and we go with the wind
California, Arizona, I harvest your crops Well its North up to Oregon to gather your hops Dig the beets from your ground, cut the grapes from your vine To set on your table your light sparkling wine
Green pastures of plenty from dry desert ground From the Grand Coulee Dam where the waters run down Every state in the Union us migrants have been We’ll work in this fight and we’ll fight till we win
It’s always we rambled, that river and I All along your green valley, I will work till I die My land I’ll defend with my life if it be Cause my pastures of plenty must always be free Fonte: LP Columbia River Collection (1987), de Woody Guthrie. Canção originalmente gravada em 1941.
A abordagem cladista foi originalmente desenvolvida pelo sistemata alemão Willi Henning em 1950, e nos últimos anos tornou-se a abordagem escolhida por muitos pesquisadores na paleoantropologia. Como resultado, a literatura está se tornando semeada de terminologia cladística, o que, infelizmente, inclui um verdadeiro enrolar de línguas. Por exemplo, caracteres derivados compartilhados são sinapomorfias. Caracteres primitivos são simplesiomorfias. Um caracter não compartilhado com outras espécies é uma autapomorfia. Caracteres convergentes são homoplasias.
Determinar relações entre espécies envolve dois passos. Primeiro, as homologias devem ser separadas das homoplasias, o que exige cuidadosa atenção com as armadilhas da convergência funcional. Em segundo lugar, as polaridades dos estados dos caracteres homólogos devem ser estabelecidas: são primitivos (plesiomórficos) ou derivados (apomórficos)? Como esta polaridade é determinada?
Suponha, por exemplo, que se investiga o espessamento ósseo sobre os olhos, encontrado na linhagem de chimpanzés, gorilas e seres humanos, mas não nos orangotangos. Este torus supra-orbital é uma sinapomorfia (caracter derivado compartilhado) unindo os três como um clado? Ou poderia ser uma simplesiomorfia (caracter primitivo compartilhado) para hominóides que foi perdido no orangotango? A resposta é obtida procurando-se abaixo na hierarquia, em espécies mais distantemente aparentadas. Este processo é conhecido como uma comparação com um grupo de fora. Neste caso, examinar-se-ia um gibão e um macaco do Velho Mundo, por exemplo. O torus supra-orbital está ausente em macacos do Velho Mundo, o que implica que realmente é uma sinapomorfia para símios africanos e os seres humanos. Assim, a partir destes critérios, os símios africanos e os seres humanos formam um grupo monofilético, ou clado. [...] Fonte: Lewin, R. 1999. Evolução humana. SP, Atheneu.
O campo é venenoso mas lindo no outono As vacas estão pastando E lentamente se envenenando O lírio-verde cor da olheira e lilás Lá floresce teus olhos são esta flor serena Violeta como suas olheiras e como este outono E a minha vida pelos teus olhos lentamente se envenena
Os meninos da escola vêm barulhentos Vestidos de farda e tocando gaita Eles colhem os lírios-verdes que são como mães Filhas de suas filhas e são cor de tuas pálpebras Que batem como as flores batem loucas aos ventos
O pastor do rebanho canta bem baixinho Enquanto que lentas e mugindo as vacas abandonam Para sempre este grande campo mal florido pelo outono Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1913.
O génio é monótono monástico Demoníaco santo eis o homem O tal que os deuses amam morre jovem Maduro fim d’Outono azedo drástico
Múltiplo-primavera fantasmático Adolescente azul ou lobisomem Por amor do amado ou desuses põem Quatro estações no caos isoexótico
Bem-vindo o sofrimento distraído Que exprime a vida curta que convido Ao jogo a jardinar enquanto cismo
Podando rosas brancas d’ora avante À luz do olhar do Anjo faiscante A tesoura a pairar no vasto abismo Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1998. Para ler Rilke, clique aqui.
Tenho quatro guarda-chuvas todos os quatro com defeito: um emperra quando abre, outro não fecha direito.
Um deles vira ao contrário se eu abro sem ter cuidado. Outro, então, solta as varetas e fica todo amassado.
O quarto é bem pequenino, pra carregar por aí; porém, toda vez que chove, eu descubro que esqueci...
Por isso, não falha nunca: se começa a trovejar, nenhum dos quatro me vale – Eu sei que vou me molhar.
Quem me dera um guarda-chuva pequeno como uma luva que abrisse sem emperrar ao ver a chuva chegar!
Tenho quatro guarda-chuvas que não me servem de nada; quando chove de repente, acabo toda encharcada.
E que fria cai a água sobre a pele ressecada! Aí.... Fonte: edição No. 149 (agosto de 2004) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema originalmente publicado em 2003.
Não sou um tempo ou uma cidade extinta. Civilizei a língua e foi resposta em cada verso. E à fome, condenaram-me os perversos e alguns dos poderosos. Amei a pátria injustamente cega, como eu, num dos olhos. E não pôde ver-me enquanto vivo. Regressarei a ela com os ossos de meu sonho precavido? E o idioma não passa de um poema salvo da espuma e igual a mim, bebido pelo sol de um país que me desterra. E agora me ergue no Convento dos Jerônimos o túmulo, que não morri. Não morrerei, não quero mais morrer. Nem sou cativo ou mendigo de uma pátria. Mas da língua que me conhece e espera. E a razão que não me dais, eu crio. Jamais pensei ser pai de tantos filhos. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Para ler Luís de Camões, clique aqui.
Visito o interior de uma casa de paredes congestionadas por estantes imensas cujas prateleiras entulhadas de cadernos e folhas soltas exibem listas e listas de frases, com palavras ou expressões em português que sempre começam com A, tais como: Ah, amigo. Anda, alazão! Amargo-azedo. Antes assim, amigão. Água, açúcar, azeite. Achei aquilo anteontem. Algas aquáticas afundam? Abelhas amam assa-peixe. Aves aninhadas amamentam? Aves ápteras apenas andam. Alguém, alhures, ama alguém. Alguém andava à-toa anteontem. Abelhas agarram a antera aberta. Arquitetos aprontaram a armadilha. Acabou antes a abjeta apropriação. Astronautas assustados atingem alvo. Abraços aconchegantes aliviam a alma. Atletas arrependidos anseiam a avaliação. Abaixo a atual administração alfandegária! Agorinha, agorinha avistei a ave assanhada. Acrobatas astutos atravessaram alvo amarelo. Águias amarelas arranharam andorinhas azuis. Alarme acionado assusta assaltantes amadores. Ainda assim, atrevo-me a achar a ação absurda. Assuntos antigos ainda anseiam amparo, amigos. Ação antiaérea atabalhoada abateu avião aliado. Ator assume assédio; atrizes aguardam audiência. Adormeci após assistir à atrapalhada apresentação. Agradeço as aclamações atribuídas ao assoalho azul. Ademais, aqui apreciamos abismados à aurora ardente. Alimentos amargos ajudam a ampliar ação antialérgica. Assim, ainda acabo abraçando aqui algum amigo antigo. Afastada a alicate, até analfabetos acertariam a argüição. Atrizes assustadas avaliam ação arquivada ante advogado atônito. Área azul amplia ação anteriormente atribuída apenas a assaltantes. Almoço: alface, almeirão, abrobrinha, arroz amanteigado, ave assada. Assalto ajuda a assustar antecipadamente antepenúltima avenida acesa. Administradores avaliam assuntos assombrosos ante audiência adormecida. As antigas algas-azuis ainda auscultam acertadamente a ânsia avassaladora. Água amarga areja a areia – assim acreditavam as antigas amazonas aventureiras. Assessores apreciarão amanhã ações (assaltos, assassinatos) atribuídas a agentes armados. E muitas, muitas outras... Pois o que começou como brincadeira, logo tornou-se fixação. E fonte de uma insanidade oportuna – ou talvez oportunista. Por isso mesmo, se o pessoal da imprensa especializada descobrir o caso, penso que em pouco tempo o nosso colecionador de A poderá ser convertido em mais um desses grandes nomes das letras brasileiras contemporâneas...
Até o advento da agricultura, os humanos sobreviveram [por meio] da caça e da coleta, assim como ainda fazem algumas populações. Estudando-se essa populações de caçadores-coletores contemporâneos, pode-se deduzir que é muito provável que aquelas populações tivessem densidade populacional baixa e que a maioria delas fosse constituída de bandos pequenos de nômades, cujos trajetos podem ser razoavelmente determinados. A população mundial em 10.000 a.C. foi estimada como sendo algo na faixa dos dez milhões [...]. Uma estrutura populacional caracterizada por pequenos demes dispersos e confinados por barreiras topográficas (que hoje em dia poderiam ser ultrapassadas em algumas horas) favorece intensamente a divergência por deriva genética; esse, sem dúvida, é o mecanismo responsável por grande parte da variação geográfica da espécie humana. É evidente que uma parte da variação geográfica é conseqüência da seleção; por exemplo, o comprimento dos membros superiores e inferiores em relação ao tamanho do corpo é menor em populações de [altas] latitudes do que nas populações tropicais, como é esperado por uma seleção que favoreça redução da perda de calor. A variação geográfica da cor da pele provavelmente é adaptativa, mas sua vantagem ainda não foi determinada com segurança. Fonte: Futuyma, D. J. 1992. Biologia evolutiva, 2ª edição. Ribeirão Preto, Sociedade Brasileira de Genética/CNPq.
São três Coisas silenciosas: A neve que cai… a hora Antes da alva... a boca de alguém Que acabou de morrer. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1915.
Nesta quarta-feira, 12/3, o Poesia contra a guerra completa dezessete meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 28.851 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Dezesseis meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Adolfo Casais Monteiro, Da Costa e Silva, E. E. Cummings, Joan, Mario Bunge, John R. Searle, José Carlos Capinan, Marian S. Dawkins, Neil Young, Pedro Tamen, Robert Goodland e Sá de Miranda. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Jacob Lawrence, John James Audubon, Masaccio e Winslow Homer.
O rebanho trafega com tranqüilidade o caminho: é sempre uma surpresa ao rebanho que ele chegue ao campo ou ao matadouro. Nenhuma raiva nenhuma esperança o rebanho leva, pouco importa que a flor sucumba aos cascos ou ainda que sobreviva. Nenhuma pergunta o rebanho não diz: até na sede ele é tranqüilo até na guerra ele é mudo – o rebanho não pronuncia, usa a luz mas nunca explica a sua falta usa o alimento sem nunca se perguntar. Sobre o rebanho o sexo que ele nunca explicava e as fêmeas cobertas recebem a fecundidade sem admiração. A morte ele desconhece e a sua vida, no rebanho não há companheiros há cada corpo em si sem lucidez alguma.
O rebanho não vê a cara dos homens aceita o caminho e vai escorrendo num andar pesado sobre os campos. Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.
Lá vem a nau Catrineta Que tem muito que contar! Ouvi, agora, senhores, Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia Que iam na volta do mar; Já não tinham que comer, Já não tinham que manjar. Deitaram sola de molho Para o outro dia jantar; Mas a sola era tão rija Que a não puderam tragar. Deitaram sortes à ventura Qual se havia de matar; Logo foi cair a sorte No capitão general. “Sobe, sobe, marujinho, Àquele mastro real, Vê se vês terras de Espanha, As praias de Portugal.” “Não vejo terras de Espanha, Nem praias de Portugal; Vejo sete espadas nuas Que estão para te matar.” “Acima, acima gajeiro, Acima, ao tope real! Olha se enxergas Espanha, Areias de Portugal.” “Alvíssaras, capitão, Meu capitão general! Já vejo terras d’Espanha, Areias de Portugal. Mas enxergo três meninas Debaixo de um laranjal: Uma sentada a coser, Outra na roca a fiar, A mais formosa de todas Está no meio a chorar.” “Todas três são minhas filhas, Oh! quem m’as dera abraçar! A mais formosa de todas Contigo a hei de casar.” “A vossa filha não quero, Que vos custou a criar.” “Dar-te-ei tanto dinheiro, Que não o possas contar.” “Não quero o vosso dinheiro, Pois vos custou a ganhar!” “Dou-te o meu cavalo branco, Que nunca houve outro igual.” “Guardai o vosso cavalo, Que vos custou a ensinar.” “Dar-te-ei a nau Catrineta Para nela navegar.” “Não quero a nau Catrineta Que a não sei governar.” “Que queres tu, meu gajeiro, Que alvíssaras te hei de dar?” “Capitão, quero a tua alma Para comigo a levar.” “Renego de ti, demônio, Que me estavas a atentar! A minha alma é só de Deus; O corpo dou eu ao mar.”
Tomou-o um anjo nos braços, Não-n’o deixou afogar. Deu um estouro o demônio, Acalmaram vento e mar; E à noite a nau Catrineta Estava em terra a varar. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Popular português datado do século 13.
Uma aranha paciente e silenciosa, Registrei o lugar de um pequeno promontório em que ela estava isolada, Registrei o modo como, para explorar as vastas redondezas vazias, Ela lançou adiante filamentos, filamentos, filamentos que saíram de dentro dela, Sempre os desenrolando, sempre os acelerando incansavelmente.
E tu, ó minha alma, no lugar em que estás, Cercada, destacada, em imensuráveis oceanos de espaço, Meditando incessantemente, aventurando-se, lançando-se, procurando as esferas para conectá-las, Até a ponte que terá de ser formada para ti, até o cabo flexível da âncora, Até que a fibra fina que atiras prenda-se em alguma parte, ó minha alma. Fonte: Whitman, W. 2006. Folhas de relva. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1870.
A maior ruptura na compreensão da maneira pela qual o sistema nervoso gera comportamento ocorreu com a descoberta, pelo menos em invertebrados, de que poderia ser mostrado que células nervosas individuais identificáveis tinham certas atribuições específicas na produção do comportamento. Esta idéia, proposta primeiramente por Wiersma no início dos anos [1950], não foi unanimemente aceita senão 15 anos depois, quando o uso de corantes permitiu, pela primeira vez, que fossem traçadas claramente as conexões de uma dada célula nervosa. As células nervosas individuais, longe de serem entidades anônimas numa multidão de outros neurônios, começaram a ser vistas como tendo identidade própria. Não foi revelado apenas que uma célula nervosa tinha certas conexões específicas com outras células, mas também que uma célula muito similar com conexões similares, podia ser encontrada em outros indivíduos da mesma espécie.
[...] As células nervosas e suas conexões podem ser mapeadas como os diagramas de circuito de um computador e os mapas se aplicam para todos os indivíduos de uma espécie.
Um mapa particularmente bem conhecido é o circuito do comportamento de saltar de um gafanhoto. Uma célula conhecida como detector lobular gigante de movimento (LGMD), encontrada na base de cada olho, recebe conexões de diferentes partes do olho e responde a movimentos no campo visual do gafanhoto. Os gafanhotos têm também uma célula chamada detector contralateral descendente de movimento (DCMD), que está conectada à LGMD. A DCMD se conecta diretamente com outras células nervosas, e estas são responsáveis pela ativação dos músculos que estendem as patas para o salto. Ao mesmo tempo, a DCMD se conecta com uma outra série de motoneurônios que ativam os músculos flexores das patas, mas que os inibe de contrair. Estas conexões inibitórias dos motoneurônios flexores evitam que o gafanhoto tente estender e flexionar suas patas ao mesmo tempo, de maneira que as conexões excitatórias possam ativar as patas sem interferência.
Assim, a rota pela qual os estímulos visuais, recebidos pelo olho, que levam um gafanhoto a pular foi, pelo menos parcialmente, mapeada [...]. É possível testar os procedimentos de células nervosas em particular, marcar suas conexões com outras células nervosas e aprender muito sobre como o comportamento é gerado. Fonte: Dawkins, M. S. 1989. Explicando o comportamento animal. SP, Manole.
1. Recife. Ponte Buarque de Macedo. Eu, indo em direção à casa do Agra, Assombrado com a minha sombra magra, Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo Das estrelas luzia... O calçamento Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento, Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida, E a minha sombra enorme enchia a ponte, Como uma pele de rinoceronte Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios Animais. Do carvão da treva imensa Caía um ar danado de doença Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos, Atravessando uma estação deserta, Uivava dentro do eu, com a boca aberta, A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade, Profundamente lúbrica e revolta, Mostrando as carnes, uma besta solta Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro, Eu vi, então, à luz de áureos reflexos, O trabalho genésico dos sexos, Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos, Dançavam, parodiando saraus cínicos, Bilhões de centrossomas apolínicos Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares, Apregoando e alardeando a cor nojenta, Fetos magros, ainda na placenta, Estendiam-me as mãos rudimentares!
Mostravam-me o apriorismo incognoscível Dessa fatalidade igualitária, Que fez minha família originária Do antro daquela fábrica terrível!
A corrente atmosférica mais forte Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro, Julgava eu ver o fúnebre candieiro Que há de me alumiar na hora da morte.
Ninguém compreendia o meu soluço, Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas, O vento bravo me atirava flechas E aplicações hiemais de gelo russo.
A vingança dos mundos astronômicos Enviava à terra extraordinária faca, Posta em rija adesão de goma laca Sobre os meus elementos anatômicos.
Ah! Com certeza, Deus me castigava! Por toda a parte, como um réu confesso, Havia um juiz que lia o meu processo E uma forca especial que me esperava!
Mas o vento cessara por instantes Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco Abafava-me o peito arqueado e porco Num núcleo de substâncias abrasantes.
É bem possível que eu um dia cegue. No ardor desta letal tórrida zona, A cor do sangue é a cor que me impressiona E a que mais neste mundo me persegue!
Essa obsessão cromática me abate. Não sei por que me vêm sempre à lembrança O estômago esfaqueado de uma criança E um pedaço de víscera escarlate.
Quisera qualquer coisa provisória Que a minha cerebral caverna entrasse, E até ao fim, cortasse e recortasse A faculdade aziaga da memória.
Na ascensão barométrica da calma, Eu bem sabia, ansiado e contrafeito, Que uma população doente do peito Tossia sem remédio na minh’alma!
E o cuspo que essa hereditária tosse Golfava, à guisa de ácido resíduo, Não era o cuspo só de um indivíduo Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu cuspo, com certeza Era a expectoração pútrida e crassa Dos brônquios pulmonares de uma raça Que violou as leis da Natureza!
Era antes uma tosse úbiqua, estranha, Igual ao ruído de um calhau redondo Arremessado, no apogeu do estrondo, Pelos fundibulários da montanha!
E a saliva daqueles infelizes Inchava, em minha boca, de tal arte, Que eu, para não cuspir por toda a parte, Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!
Na alta alucinação de minhas cismas O microcosmos líquido da gota Tinha a abundância de uma artéria rota, Arrebentada pelos aneurismas.
Chegou-me o estado máximo da mágoa! Duas, três, quatro, cinco, seis e sete Vezes que eu me furei com um canivete, A hemoglobina vinha cheia de água!
Cuspo, cujas caudais meus beiços regam, Sob a forma de mínimas camândulas, Benditas sejam todas essas glândulas, Que, quotidianamente, te segregam!
Escarrar de um abismo noutro abismo, Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, Há mais filosofia neste escarro Do que em toda a moral do Cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, Jamais exprimiria o acérrimo asco Que os canalhas do mundo me provocam!
2. Foi no horror dessa noite tão funérea Que eu descobri, maior talvez que Vinci, Com a força visualística do lince, A falta de unidade na matéria!
Os esqueletos desarticulados, Livres do acre fedor das carnes mortas, Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas, Numa dança de números quebrados!
Todas as divindades malfazejas, Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos, Imitando o barulho dos engasgos, Davam pancadas no adro das igrejas.
Nessa hora de monólogos sublimes, A companhia dos ladrões da noite, Buscando uma taverna que os acoite, Vai pela escuridão pensando crimes.
Perpetravam-se os atos mais funestos, E o luar, da cor de um doente de icterícia, Iluminava, a rir, sem pudicícia, A camisa vermelha dos incestos.
Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me, Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto, Um sugestionador olho, ali posto De propósito, para hipnotizar-me!
Em tudo, então, meus olhos distinguiram, Da miniatura singular de uma aspa, À anatomia mínima da caspa, Embriões de mundos que não progrediram!
Pois quem não vê aí, em qualquer rua, Com a fina nitidez de um claro jorro, Na paciência budista do cachorro A alma embrionária que não continua?!
Ser cachorro! Ganir incompreendidos Verbos! Querer dizer-nos que não finge, E a palavra embrulhar-se no laringe, Escapando-se apenas em latidos!
Despir a putrescível forma tosca, Na atra dissolução que tudo inverte, Deixar cair sobre a barriga inerte O apetite necrófago da mosca!
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a, Acho-a nesse interior duelo secreto Entre a ânsia de um vocábulo completo E uma expressão que não chegou à língua!
Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos, Nos antiperistálticos abalos Que produzem nos bois e nos cavalos A contração dos gritos instintivos!
Tempo viria, em que, daquele horrendo Caos de corpos orgânicos disformes Rebentariam cérebros enormes, Como bolhas febris de água, fervendo!
Nessa época que os sábios não ensinam, A pedra dura, os montes argilosos Criariam feixes de cordões nervosos E o neuroplasma dos que raciocinam!
Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O, E o meu sonho crescia no silêncio, Maior que as epopéias carolíngias!
Era a revolta trágica dos tipos Ontogênicos mais elementares, Desde os foraminíferos dos mares À grei liliputiana dos pólipos.
Todos os personagens da tragédia, Cansados de viver na paz de Buda, Pareciam pedir com a boca muda A ganglionária célula intermédia.
A planta que a canícula ígnea torra, E as coisas inorgânicas mais nulas Apregoavam encéfalos, medulas Na alegria guerreira da desforra!
Os protistas e o obscuro acervo rijo Dos espongiários e dos infusórios Recebiam com os seus órgãos sensórios O triunfo emocional do regozijo!
E apesar de já ser assim tão tarde, Aquela humanidade parasita, Como um bicho inferior, berrava, aflita, No meu temperamento de covarde!
Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso, Vi que, igual a um amniota subterrâneo, Jazia atravessada no meu crânio A intercessão fatídica do atraso!
A hipótese genial do microzima Me estrangulava o pensamento guapo, E eu me encolhia todo como um sapo Que tem um peso incômodo por cima!
Nas agonias do delirium-tremens, Os bêbedos alvares que me olhavam, Com os copos cheios esterilizavam A substância prolífica dos semens!
Enterram as mãos dentro das goelas, E sacudidos de um tremor indômito Expeliam, na dor forte do vômito, Um conjunto de gosmas amarelas.
Iam depois dormir nos lupanares Onde, na glória da concupiscência, Depositavam quase sem consciência As derradeiras forças musculares.
Fabricavam destarte os blastodermas, Em cujo repugnante receptáculo Minha perscrutação via o espetáculo De uma progênie idiota de palermas.
Prostituição ou outro qualquer nome, Por tua causa, embora o homem te aceite, É que as mulheres ruins ficam sem leite E os meninos sem pai morrem de fome!
Por que há de haver aqui tantos enterros? Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata... Há o malvado carbúnculo que mata A sociedade infante dos bezerros!
Quantas moças que o túmulo reclama! E após a podridão de tantas moças, Os porcos esponjando-se nas poças Da virgindade reduzida à lama!
Morte, ponto final da última cena, Forma difusa da matéria imbele, Minha filosofia te repele, Meu raciocínio enorme te condena!
Diante de ti, nas catedrais mais ricas, Rolam sem eficácia os amuletos, Oh! Senhora dos nossos esqueletos E das caveiras diárias que fabricas!
E eu desejava ter, numa ânsia rara, Ao pensar nas pessoas que perdera, A inconsciência das máscaras de cera Que a gente prega, com um cordão, na cara!
Era um sonho ladrão de submergir-me Na vida universal, e, em tudo imerso, Fazer da parte abstrata do Universo, Minha morada equilibrada e firme!
Nisto, pior que o remorso do assassino, Reboou, tal qual, num fundo de caverna, Numa impressionadora voz interna, O eco particular do meu Destino:
3. “Homem! por mais que a Idéia desintegres, Nessas perquisições que não têm pausa, Jamais, magro homem, saberás a causa De todos os fenômenos alegres!
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas A estéril terra, e a hialina lâmpada oca, Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!) O conteúdo das lágrimas hediondas.
Negro e sem fim é esse em que te mergulhas Lugar do Cosmos, onde a dor infrene É feita como é feito o querosene Nos recôncavos úmidos das hulhas!
Porque, para que a Dor perscrutes, fora Mister que, não como és, em síntese, antes Fosses, a refletir teus semelhantes, A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é que Ela Compreende. E se, por vezes, se divide, Mesmo ainda assim, seu todo não reside No quociente isolado da parcela!
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda! Das papilas nervosas que há nos tatos Veio e vai desde os tempos mais transatos Para outros tempos que hão de vir ainda!
Como o machucamento das insônias Te estraga, quando toda a estuada Idéia Dás ao sôfrego estudo da ninféia E de outras plantas dicotiledôneas!
A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra; A formação molecular da mirra, O cordeiro simbólico da Páscoa;
As rebeladas cóleras que rugem No homem civilizado, e a ele se prendem Como às pulseiras que os mascates vendem A aderência teimosa da ferrugem;
O orbe feraz que bastos tojos acres Produz; a rebelião que, na batalha, Deixa os homens deitados, sem mortalha, Na sangueira concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos chicotes Da hemorragia; as nódoas mais espessas, O achatamento ignóbil das cabeças, Que ainda degrada os povos hotentotes;
O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo Entra, à espera que a mansa vítima o entre, – Tudo que gera no materno ventre A causa fisiológica do nojo;
As pálpebras inchadas na vigília, As aves moças que perderam a asa, O fogão apagado de uma casa, Onde morreu o chefe da família;
O trem particular que um corpo arrasta Sinistramente pela via férrea, A cristalização da massa térrea, O tecido da roupa que se gasta;
A água arbitrária que hiulcos caules grossos Carrega e come; as negras formas feias Dos aracnídeos e das centopéias, O fogo-fátuo que ilumina os ossos;
As projeções flamívomas que ofuscam, Como uma pincelada rembrandtesca, A sensação que uma coalhada fresca Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo de Tifon e Osíris, O homem grande oprimindo o homem pequeno, A lua falsa de um parasseleno, A mentira meteórica do arco-íris;
Os terremotos que, abalando os solos, Lembram paióis de pólvora explodindo, A rotação dos fluidos produzindo A depressão geológica dos pólos;
O instinto de procriar, a ânsia legitima Da alma, afrontando ovante aziagos riscos, O juramento dos guerreiros priscos Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações que o psicoplasma Humano sofre na mania mística, A pesada opressão característica Dos 10 minutos de um acesso de asma;
E, (conquanto contra isto ódios regougues) A utilidade fúnebre da corda Que arrasta a rês, depois que a rês engorda, À morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo abismo encerra Forma a complicação desse barulho Travado entre o dragão do humano orgulho E as forças inorgânicas da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde cansas! Ignoto é o gérmen dessa força ativa Que engendra, em cada célula passiva, A heterogeneidade das mudanças!
Poeta, feto malsão, criado com os sucos De um leite mau, carnívoro asqueroso, Gerado no atavismo monstruoso Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores Governada por átomos mesquinhos, Teu pé mata a uberdade dos caminhos E esteriliza os ventres geradores!
O áspero mal que a tudo, em torno, trazes, Análogo é ao que, negro e a seu turno, Traz o ávido filóstomo noturno, Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes A perfeição dos seres existentes, Hás de mostrar a cárie dos teus dentes Na anatomia horrenda dos detalhes!
O Espaço – esta abstração spencereana Que abrange as relações de coexistência E só! Não tem nenhuma dependência Com as vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes elipses que as estrelas Traçam, e ao espectador falsas se antolham São verdades de luz que os homens olham Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes Que essa mão, de esqueléticas falanges, Dentro dessa água que com a vista abranges, Também prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga feroz que te esbordoa Há de deixar-te essa medonha marca, Que, nos corpos inchados de anasarca, Deixam os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás no trabalho que tiveste A misericordiosa toalha amiga, Que afaga os homens doentes de bexiga E enxuga, à noite, as pústulas da peste!
Quando chegar depois a hora tranqüila, Tu serás arrastado, na carreira, Como um cepo inconsciente de madeira Na evolução orgânica da argila!
Um dia comparado com um milênio Seja, pois, o teu último Evangelho... É a evolução do novo para o velho E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras! O corvo que comer as tuas fibras Há de achar nelas um sabor amargo!”
4. Calou-se a voz. A noite era funesta. E os queixos, a exibir trismos danados, Eu puxava os cabelos desgrenhados Como o rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia, com apóstrofes veementes, No estentor de mil línguas insurrectas, O convencionalismo das Pandetas E os textos maus dos códigos recentes!
Minha imaginação atormentada Paria absurdos... Como diabos juntos, Perseguiam-me os olhos dos defuntos Com a carne da esclerótica esverdeada.
Secara a clorofila das lavouras. Igual aos sustenidos de uma endecha, Vinha-me às cordas glóticas a queixa Das coletividades sofredoras.
O mundo resignava-se invertido Nas forças principais do seu trabalho... A gravidade era um princípio falho, A análise espectral tinha mentido!
O Estado, a Associação, os Municípios Eram mortos. De todo aquele mundo Restava um mecanismo moribundo E uma teleologia sem princípios.
Eu queria correr, ir para o inferno, Para que, da psiquê no oculto jogo, Morressem sufocadas pelo fogo Todas as impressões do mundo externo!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio... Na Natureza, uma mulher de luto Cantava, espiando as árvores sem fruto, A canção prostituta do ludíbrio! Fonte: Anjos, A. 2004. Eu e outras poesias, 46ª edição. RJ, Bertrand. A primeira edição do livro foi publicada em 1912.
Até algum tempo atrás, os cientistas relutavam em se dedicar ao problema da consciência. Atualmente isso mudou e uma série de livros sobre o assunto têm sido publicados por biólogos, matemáticos, físicos, bem como filósofos. Dentre os cientistas que vou abordar, Francis Crick procura fornecer, em seu livro The astonishing hypothesis [...], a análise mais simples e direta do que conhecemos a respeito do funcionamento do cérebro. [...]
Crick toma a percepção visual como seu ponto de apoio para tentar desvendar o problema da consciência. Creio ser esta uma boa escolha apenas se levarmos em conta que muitas pesquisas sobre a anatomia e a fisiologia da visão já foram realizadas nas ciências do cérebro. No entanto, um problema relacionado a tal escolha encontra-se no fato de que o funcionamento do sistema visual é extremamente complicado. [...]
Não sabemos realmente como tudo isso funciona em detalhe, mas aqui está um esquema geral [...]: ondas de luz refletidas pelos objetos incidem sobre as células fotorreceptoras na retina do globo ocular. Estas células são os conhecidos bastonetes e cones, que formam a primeira das cinco camadas das células da retina, através das quais o sinal passa. As outras são denominadas células horizontais, bipolares, amácrinas e ganglionares. As células ganglionares, de uma certa forma, fluem em direção ao nervo óptico e o sinal continua passando nele pelo quiasma óptico até uma porção no meio do cérebro chamada corpo geniculado lateral (CGL). O CGL funciona como uma espécie de estação de retransmissão, enviando os sinais ao córtex visual que se encontra na parte posterior do crânio. Nós pensávamos, quando me interessei inicialmente por essas questões, que haviam três porções no córtex visual, zonas 17, 18 e 19, assim classificadas por K. Brodmann nos primórdios [do século 20], quando desenhou seu famoso mapa do cérebro. Hoje em dia, consideramos tal noção muito simplista. Já contamos atualmente com até sete áreas visuais, denominadas V1, V2 etc., e continuamos contando. De qualquer forma, o sinal atravessa as várias áreas visuais e há uma boa quantidade de [retroação] para o CGL. No final, todo o processo causa uma experiência visual consciente, mas como exatamente isso acontece é o que estamos tentando desvendar. Fonte: Searle, J. R. 1998. O mistério da consciência. RJ, Paz e Terra. O autor foi mencionado antes aqui.
Saudade! Olhar de minha mãe rezando, E o pranto lento deslizando em fio... Saudade! Amor da minha terra... O rio Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho... O caburé com frio, Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando... E, ao vento, as folhas lívidas cantando A saudade imortal de um sol de estio.
Saudade! Asa de dor do Pensamento! Gemidos vãos de canaviais ao vento... As mortalhas de névoa sobre a serra...
Saudade! O Parnaíba – velho monge As barbas brancas alongando... E, ao longe, O mugido dos bois da minha terra... Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema (em versão algo diferente) originalmente publicado em 1908.