31 maio 2008

História natural dos rios amazônicos

Michael Goulding

10.
[...]
Quando ocorreu a separação entre a América do Sul e a África, cada continente seguiu um caminho [evolutivo] diferente, que culminou em floras e faunas distintas. Isso resultou em um aumento considerável da diversidade da vida, pois ambos os continentes eram, em grande parte, tropicais, apresentando geografias complexas, e cada um continha uma grande bacia fluvial que foi coberta principalmente por floresta pluvial. É de certa forma irônico que um dos maiores perigos enfrentados atualmente pela diversidade amazônica seja a africanização de sua paisagem. Tal processo de africanização advém das sementes de gramíneas, semeadas depois da derrubada da florestal pluvial. As plantas superiores conquistaram a Amazônia com [florestas], não com pastagens. Entretanto, os promotores do desenvolvimento da Amazônia querem pastos e utilizam principalmente as espécies africanas por causa do seu vigor e características agressivas de colonização. A filosofia da pastagem resultou em um dos maiores, mais dispendiosos e descontrolados experimentos agronômicos da história do planeta. Duas décadas dessa experimentação custaram cerca de 5% da floresta pluvial amazônica, danificaram vários recursos pesqueiros importantes e aumentaram em muito a pobreza da região. Se você viajar ao longo da Transamazônica, que corta a parte sul da Amazônia, o primeiro foco do experimento de transformar [floresta] em pastagem, não verá sequer um vaqueiro amazônico a cavalo contemplando orgulhosamente seu rebanho a se alimentar de pastos verdejantes. Em vez disso, verá pobreza, gado esquelético e, principalmente, pastos abandonados e improdutivos, onde mudas da floresta pluvial e capins africanos digladiam-se pela conquista das clareiras.
[...]

Fonte: Goulding, M. 1997. História natural dos rios amazônicos. Brasília, Sociedade Civil Mamirauá, CNPq & Rainforest Alliance.

30 maio 2008

As belas meninas pardas

Alda Lara

As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.

Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são
todos os dias.

E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, trás desenganos...

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

Nos passeios de domingo,
andam sempre bem trajadas.
Direitinhas. Aprumadas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada
(Parece mal rir na rua!...)

E nunca viram a lua,
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

E desejam, sobretudo, um casamento decente...

O mais, são histórias perdidas...
Pois que importam outras vidas?...
outras raças?..., outros mundos?...
que importam outras meninas,
felizes, ou desgraçadas?!...

As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas...

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1959.

29 maio 2008

O berço


Berthe Morisot (1841-1895). Le berceau. 1872.

Fonte da foto: Wikipedia.

27 maio 2008

Idéias íntimas

Álvares de Azevedo

(Fragmento)
La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche,
La table où je t’écris, … … … … … … … … … … … …
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
Mes gros souliers ferrés, mon bâton, mon chapeau,
Mês libres pêle-mêle entassés sur leur planche.
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
De cet espace étroit sont tout l’ameublement. – Lamartine, Jocelyn

1.
Ossian o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
Mas pranteia uma eterna monodia,
Tem na lira do gênio uma só corda,
Fibra de amor e Deus que um sopro agita:
Se desmaia de amor a Deus se volta,
Se pranteia por Deus de amor suspira.
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
Fantástico alemão, poeta ardente
Que ilumina o clarão das gotas pálidas
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se... Contudo,
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé: passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu d’inverno... Solitário
Passo as noites aqui e os dias longos;
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma;
Debalde ali de um canto um beijo implora,
Como a beleza que o Sultão despreza,
Meu cachimbo alemão abandonado!
Não passeio a cavalo e não namoro,
Odeio o lasquenê... Palavra d’honra!
Se assim me continuam por dois meses
Os diabos azuis nos frouxos membros,
Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.

2.
Enchi o meu salão de mil figuras.
Aqui voa um cavalo no galope,
Um roxo dominó as costas volta
A um cavaleiro de alemães bigodes,
Um preto beberrão sobre uma pipa,
Aos grossos beiços a garrafa aperta...
Ao longo das paredes se derramam
Extintas inscrições de versos mortos,
E mortos ao nascer... Ali na alcova
Em águas negras se levanta a ilha
Romântica, sombria à flor das ondas
De um rio que se perde na floresta...
Um sonho de mancebo e de poeta,
El-Dorado de amor que a mente cria
Como um Éden de noites deleitosas...
Era ali que eu podia no silêncio
Junto de um anjo... Além o romantismo!
Borra adiante folgaz caricatura
Com tinta de escrever e pó vermelho
A gorda face, o volumoso abdómen,
E a grossa penca do nariz purpúreo
Do alegre vendilhão entre botelhas

Metido num tonel... Na minha cômoda
Meio encetado o copo, inda verbera
As águas d’oiro do Cognac fogoso.
Negreja ao pé narcótica botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali se mistura o charuto Havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titâneo Digesto, e ao lado dele
Childe Harold entreaberto ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.

3.
Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
À estante pulvurenta. A roupa, os livros
Sobre as poucas cadeiras se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
Alfredo de Musset encobre, às vezes
De Guerreiro, ou Valasco um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!

4.
Na minha sala três retratos pendem.
Ali Victor Hugo. Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos loiros
Como c’roa soberba. Homem sublime,
O poeta de Deus e amores puros
Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
E Esmeralda a Cigana... e diz a crônica
Que foi aos tribunais parar um dia
Por amar as mulheres dos amigos
E adúlteros fazer romances vivos.

5.
Aquele é Lamennais – o bardo santo,
Cabeça de profeta, ungido crente,
Alma de fogo na mundana argila
Que as harpas de Sion vibrou na sombra,
Pela noite do século chamando
A Deus e à liberdade as loucas turbas.
Por ele a George Sand morreu de amores,
E dizem que... Defronte, aquele moço
Pálido, pensativo, a fronte erguida,
Olhar de Bonaparte em face Austríaca,
Foi do homem secular as esperanças.
No berço imperial um céu de Agosto
Nos cantos de triunfo despertou-o...
As águias de Wagram e de Marengo
Abriam flamejando as longas asas
Impregnadas do fumo dos combates,
Na púrpura dos Césares, guardando-o.
E o gênio do futuro parecia
Predestiná-lo à glória. A história dele?
Resta um crânio nas urnas do estrangeiro...
Um loureiro sem flores nem sementes...
E um passado de lágrimas... A terra
Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma.
Pode o mundo chorar sua agonia
E os louros de seu pai na fronte dele
Infecundos depor... Estrela morta,
Só pode o menestrel sagrar-te prantos!

6.
Junto a meu leito, com as mãos unidas,
Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
Pálida sombra de mulher formosa
Entre nuvens azuis pranteia orando.
É um retrato talvez. Naquele seio
Porventura sonhei doiradas noites:
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros, e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo.
Foi-se a minha visão. E resta agora
Aquele vaga sombra na parede
– Fantasma de carvão e pó cerúleo,
Tão vaga, tão extinta e fumacenta
Como de um sonho o recordar incerto.

7.
Em frente do meu leito, em negro quadro
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se...
E como a nívea mão recata o seio...
Oh! quantas vezes, ideal mimoso,
Não encheste minh’alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante,
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poento vidro que te guarda o sono!

8.
O pobre leito meu, desfeito ainda
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo...
E a donzela ideal nos róseos lábios,
No doce berço do moreno seio
Minha vida embalou estremecendo...
Foram sonhos, contudo. A minha vida
Se esgota em ilusões. E quando a fada
Que diviniza meu pensar ardente
Um instante em seus braços me descansa
E roça a medo em meus ardentes lábios
Um beijo que de amor me turva os olhos,
Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte,
Um espírito negro me desperta,
O encanto do meu sonho se evapora
E das nuvens de nácar da ventura
Rolo tremendo à solidão da vida!

9.
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?

10.
Meu pobre leito! eu amo-te contudo!

Aqui levei sonhando noites belas;
As longas horas olvidei libando
Ardentes gotas de licor doirado,
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance...

Meu leito juvenil, da minha vida
És a página d’oiro. Em teu asilo
Eu sonho-me poeta e sou ditoso,
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!

Quantas virgens amei! que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas,
Mais trêmulo que Faust, eu não beijava,
Mais feliz que Don Juan e Lovelace
Não apertei ao peito desmaiando!

Ó meus sonhos de amor e mocidade,
Porque ser tão formosos, se devíeis
Me abandonar tão cedo... e eu acordava
Arquejando a beijar meu travesseiro?

11.
Junto do leito meus poetas dormem
– O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron –
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito, pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro!
Quero-te muito bem, ó meu comparsa
Nas doudas cenas de meu drama obscuro!
E num dia de spleen, vindo a pachorra,
Hei de evocar-te dum poema heróico
Na rima de Camões e de Ariosto,
Como padrão às lâmpadas futuras!
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

12.
Aqui sobre esta mesa junto ao leito
Em caixa negra dois retratos guardo.
Não os profanem indiscretas vistas.
Eu beijo-os cada noite: neste exílio
Venero-os juntos e os prefiro unidos
– Meu pai e minha mãe. – Se acaso um dia
Na minha solidão me acharem morto,
Não os abra ninguém. Sobre meu peito
Lancem-nos em meu túmulo. Mais doce
Será certo o dormir da noite negra
Tendo no peito essas imagens puras.

13.
Havia uma outra imagem que eu sonhava
No meu peito na vida e no sepulcro.
Mas ela não o quis... rompeu a tela
Onde eu pintara meus doirados sonhos.
Se posso no viver sonhar com ela,
Essa trança beijar de seus cabelos
E essas violetas inodoras, murchas,
Nos lábios frios comprimir chorando,
Não poderei na sepultura, ao menos,
Sua imagem divina ter no peito.

14.
Parece que chorei... Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra...
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
Filtram no sangue meu correndo a vida,
Vibram-me os nervos e as artérias queimam,
Os meus olhos ardentes se escurecem
E no cérebro passam delirosos
Assomos de poesia... Dentre a sombra
Vejo num leito d’oiro a imagem dela
Palpitante, que dorme e que suspira,
Que seus braços me estende...
Eu me esquecia:
Faz-se noite; traz fogo e dois charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...

Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1853.

26 maio 2008

O deserto

Helder Macedo

Agora o vazio
agora o deserto
agora o vazio
porque estou sem mim
agora o deserto
porque a vida que gerei
negou a vida

chorai chorai comigo
ou tapai-me a boca
com pedras e com estrume
chorai chorai chorai
porque aquele que tinha em si
a morte e a vida
escolheu a morte
recusou a vida

e eu não sei senão chorar
neste deserto
e eu não sei
e eu não sei
e o deserto é vazio
e o deserto sou eu
porque a vida que gerei
escolheu a morte

essas vozes que ouvias
meu menino
essas vozes que ouviste
e chamavam por ti
não era a morte não
que a morte é muda
e quando a morte fala
é porque a vida
era a voz do que tu és
e não conheces
a chamar-te por ti
a chamar o seu dono
para lhe mostrar
que toda a eternidade
está contida
no teu corpo
que podes conhecer
a eternidade
pois não há outra
além de conhecê-la
no prazo temporário
do teu ser

e só ai
só em ti
porque ela é tão finita
como tu
é tão mutável
e tudo o que o não seja
é só o nada
nada
nada

ah chorai comigo
ou então matai-me

recusaste
ser tudo quanto és
recusaste
encontrar-te
face a face
com o segredo de ti
ou cegaste
quando o viste
e guardaste só nos olhos
a visão
que projectaste no vazio
e então morreste
antes de ser
pois és profeta
de mundos que não há
e não do mundo

e morreste
e morreste
e morreste antes de seres
e não deste o teu nome
à tua vida
e eu choro
choro
choro
sobre o teu pavor
de não teres alma
de não seres tu

a alma do teu corpo
e choro sobre mim
que te gerei
e pari morte
porque negaste
a vida que em mim tinha
e que te dei
e fiquei só
e estou sem nada
e o meu ventre está oco
é o vazio
e sequei
e sequei
como o deserto

Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1969.

25 maio 2008

Por que faz frio no inverno?

Felipe A. P. L. Costa

[...]
Os ciclos dia-noite e a sucessão anual das estações (verão, outono, inverno, primavera) são conseqüências de dois movimentos executados simultaneamente pela Terra: a rotação diária em volta do seu próprio eixo e a translação anual em torno do Sol. Durante o movimento de rotação, é dia na face do planeta exposta ao Sol e noite na outra. E mais: embora o fotoperíodo – relação entre horas de céu claro (dia) e horas de céu escuro (noite) – esteja sempre mudando, em função do calendário e da latitude, ao final de um ano, qualquer ponto na superfície da Terra acumula exatamente um semestre de dias e um semestre de noites.

Diferenças sazonais no fotoperíodo tornam-se gradativamente mais acentuadas à medida que nos afastamos do equador terrestre (0 grau de latitude) e caminhamos em direção aos pólos Sul e Norte (90 graus de latitude sul e norte, respectivamente), de tal modo que dias cada vez mais longos no verão são compensados por dias cada vez mais curtos no inverno. [...]

Além do contraste no fotoperíodo, outra diferença notável entre verão e inverno está na intensidade da insolação, que varia ciclicamente ao longo do ano, acompanhando a variação que ocorre na inclinação dos raios solares em relação à superfície do planeta. A inclinação dos raios que incidem em cada hemisfério é mínima no primeiro dia do verão, mas aumenta gradativamente até alcançar seu valor máximo no primeiro dia do inverno, quando então volta a diminuir até alcançar novamente um valor mínimo no primeiro dia do verão seguinte, e assim por diante. Esse comportamento cíclico é uma conseqüência direta da forma esférica do planeta e do fato de que o seu eixo de rotação está inclinado (23 graus e meio) em relação ao plano de translação – a rigor, se a Terra girasse perpendicularmente em relação ao plano de translação, nós não teríamos as estações do ano.

Nas latitudes superiores a 23 graus e meio, tanto no Hemisfério Sul como no Norte (isto é, nas latitudes que ficam além dos Trópicos de Capricórnio e Câncer, respectivamente), a incidência dos raios solares nunca é perpendicular à superfície terrestre. Para os habitantes que moram na maior parte da região Sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e, com exceção de sua porção noroeste, também o Paraná), situada em latitudes que estão além do Trópico de Capricórnio, isso significa que eles nunca experimentam o Sol a pino, nem mesmo no verão.

A intensidade da insolação – quantidade de radiação incidente por unidade de área – que atinge uma região é inversamente proporcional ao ângulo de incidência dos raios. À medida que esse ângulo aumenta, outras duas variáveis também aumentam – a distância percorrida pelos raios na atmosfera e a área de incidência deles na superfície terrestre – e, consequentemente, a intensidade da insolação diminui. Como o ângulo de incidência dos raios solares é sempre maior no inverno, a intensidade da insolação sempre é menor nessa estação do ano, em qualquer localidade.
[...]

Concluindo, portanto, o frio do inverno e o calor do verão são produzidos por mudanças periódicas que ocorrem no tempo de exposição (fotoperíodo) aos raios solares e na intensidade da insolação; além disso, o contraste entre o frio do inverno e o calor do verão tende a aumentar em localidades progressivamente mais afastadas do equador terrestre.

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2003. Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas. Juiz de Fora, Edição do Autor.

24 maio 2008

Noturno

José Asunción Silva

Uma noite,
Uma noite toda cheia de murmúrios, de perfumes e da música das asas;
Uma noite,
Em que ardiam na nupcial e úmida sombra das campinas as lucíolas fantásticas,
A meu lado lentamente, contra mim cingida toda, muda e pálida,
Como se um pressentimento de amarguras infinitas,
Até o fundo mais recôndito das fibras te agitasse,
Pela senda que se perde no horizonte da planície
Caminhavas;
E nos céus
Azulados e profundos esparzia a lua cheia sua claridade branca.

Tua sombra,
Fina e lânguida,
E a minha,
Projetadas pelos raios do luar na areia triste
Do caminho se juntavam
E eram uma,
E eram uma,
E eram uma sombra única,
Uma longa sombra única,
Uma longa sombra única...

Esta noite
Eu só, a alma
Cheia assim das infinitas amarguras e aflições de tua morte,
Separado de ti mesma pelo tempo, pelo túmulo e a distância,
Pela escuridão sem termo
Aonde a nossa voz não chega,
Silencioso
Pela senda caminhava...

E escutavam-se os ladridos dos cachorros para a lua,
Lua pálida,
E a coaxada
Dos batráquios...

Senti frio. O mesmo frio que coaram no meu corpo
Tuas faces e teus seios e teus dedos adorados
Entre as cândidas brancuras
Das cobertas mortuárias.
Era o frio do sepulcro, sopro gélido da morte,
Era o frio atroz do nada.
Minha sombra,
Projetada pelos raios do luar na areia triste,
Solitária,
Solitária,
Pela estepe desolada caminhava.
Foi então que a tua sombra
Ágil e esbelta,
Fina e lânguida,
Como nessa extinta noite da passada primavera,
Noite cheia de murmúrios, de perfumes e da música das asas,
Acercou-se e foi com ela,
Acercou-se e foi com ela,
Acercou-se e foi com ela... Oh, as sombras enlaçadas!
Oh, as sombras de dois corpos que se juntam às das almas!
Oh, as sombras que se buscam pelas noites de tristezas e de lágrimas!

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1883.

23 maio 2008

Boulevard à noite


Camille Pissarro (1830-1903). Boulevard Montmartre, effect de nuit. 1897.

Fonte da foto: L’Impressionnisme et les peintres impressionnistes.

22 maio 2008

Sainte-Victoire depois da morte de Cézanne

Al Berto

no mais remoto isolamento da memória
guardei preciosamente a sombra dos basaltos
luminosos xistos frestas de granito janelas
perto de sainte-victoire mais cinzenta que nunca
pintava sem cessar pintava
desde o alvorecer até que a noite descia
obrigando a mão e o pensamento a desfalecer

trabalhei sempre a obsessiva luz
mas a velhice aprisionou-me na vertigem
muito longe na idade
continuei a pintar sur motif
parecia-me fazer lentos progressos
quase compreendi os sobrepostos planos
de um mesmo objecto sob a claridade d’aix

foi em 1906
montado num burro carregado com material
ia por onde o cortante mistral passara
deixando a descoberto o implacável sol
modulava terras pinhais nuvens casas corpos
mas a morte não consentiu que eu executasse
as vislumbradas geométricas paisagens e
comigo se perdeu o segredo dessa pirâmide
que é sainte-victoire vibrando
na cegante luminosidade do meio-dia

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1986. Para ver obra de Cézanne, clique aqui.

21 maio 2008

Caninos brancos

Jack London

1.
O conjunto de abetos escuros formava uma floresta que margeava ambos os lados do gelado curso de água. Um vento recente arrancara às arvores o seu manto de geada, e elas pareciam inclinar-se umas para as outras, negras e agourentas, na luz agonizante. Reinava sobre a paisagem um silêncio imenso. Aquela região era desolada, sem vida, sem movimento, tão só e gelada que a palavra tristeza não era suficiente para a descrever. Havia nela uma sugestão de riso, mas de um riso mais terrível que qualquer tristeza – um riso sem alegria, como o sorriso da esfinge, um riso frio como o gelo e com algo do horror da infalibilidade. Era a sabedoria despótica e incomunicável do riso eterno perante a futilidade e as agruras da vida. Era a terra do pólo Norte, agreste e gelado.

London, J. 2003 [1906]. Caninos brancos. SP, Martin Claret.

20 maio 2008

Noturno de uma vila qualquer

Dantas Motta

Nenhum ruído de cães nas latas de lixo.
(Aqui não há cães, nem latas de lixo.)
Como também não há os mendigos.
Em uma ou outra casa, se conversa,
E o pó do café, escorrendo pelas janelas,
Preteja as paredes dos fundos.
Olga, desfolhada, não me veio esta noite.
Ninguém mesmo tropeçou nas cadeiras da sala.
Mas deve haver algum defunto, alguma
Criança germinando dentro da noite.
E não é sem tempo que Maria Balduína,
A parteira, com uma luz acesa a desoras,
Domine as mulheres grávidas da vila.
Orozimbo pisa que nem distrito federal
A Ladeira do Meio, o Beco dos Andrades,
Enquanto Pedro Vieira ensaia u’a modinha qualquer
(felizmente engasgada) à Anita Eleocádia.
O subdelegado de polícia e a cadeia pública
Dormem. Rápido, um vulto de preto, chicoteando
Morcegos, a Rua de Cima atravessa,
Como se fora a viúva do farmacêutico no cio,
Como se fora o padre conduzindo a âmbula.
Havia mesmo uma chusma de cavalos mancos
Pelas ruas. As almas, pela noite, andavam
Como símios. Nem todo o arraial dormia.
O próprio cemitério matutava.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1946.

19 maio 2008

A uma dama

Gregório de Matos

Vês esse Sol de luzes coroado?
Em pérolas a Aurora convertida?
Vês a Lua, de estrelas guarnecida?
Vês o Céu, de planetas adornado?

O Céu deixemos: vês naquele prado
A rosa com razão desvanecida?
A açucena por alva presumida?
O cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado: vem cá, minha adorada:
Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina...
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.

Fonte: Spina, S. 1995. A poesia de Gregório de Matos. SP, Edusp.

18 maio 2008

Judite e Holofernes


Artemisia Gentileschi (1593-1653). Giuditta che decapita Oloferne. 1620.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 maio 2008

Energia solar: mitos e realidade

Barry Commoner

Um dos benefícios que pôde ser extraído de um sombrio episódio conhecido como crise de energia é o de que esta crise conduziu à redescoberta de nossa mais rica fonte de energia: o Sol. Mas parece que estamos criando tantos mitos acerca da energia solar quanto o número de mitos existentes sobre o próprio Sol. Alguns dos mais populares são: a energia solar só é utilizável nas regiões muito ensolaradas, como o Arizona; é ineficaz durante a noite e nos dias nublados; a luz solar é muito difusa para prover as altas temperaturas necessárias à geração de energia elétrica e outras fontes de alta qualidade; se a energia solar fosse verdadeiramente possível e valesse a pena economicamente, as grandes empresas elétricas a teria desenvolvido.

Estes mitos têm sido amplamente divulgados pelos relatórios oficiais sobre a crise de energia. Por exemplo: há poucos anos, um exaustivo relatório do NPC (Conselho Nacional de Petróleo), constituído em sua maior parte por membros de equipes das companhias de petróleo, como também por um grupo do Departamento do Interior, sobre as perspectivas para a energia americana, oferecia a quintessência da mitologia da energia solar: “Em conseqüência de ser difusa e intermitente, a energia solar não está prevista para ser usada em larga escala nos próximos 15 anos, mesmo com significativos melhoramentos. Tanto as grandes áreas nas quais a energia deve ser coletada quanto o custo de equipamentos de coletas e conversão impedem o uso intensivo de aparelhos solares tais como os evaporadores, destiladores, aquecedores, refrigeradores, caldeiras, células etc.”.
[...]

Fonte: Commoner, B. 1986 [1978]. Energias alternativas. RJ, Record.

16 maio 2008

O jangadeiro

Adriano Espínola

Jangadas amarelas, azuis, brancas,
logo invadem o verde mar bravio,
o mesmo que Iracema, em arrepio,
sentiu banhar de sonho as suas ancas.
Que importa a lenda, ao longe, na história,
se elas cruzam, ligeiras, nesse instante,
o horizonte esticado da memória,
tornando o que se vê mito incessante?
As velas vão e voltam, incontidas,
sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro
repete antigos gestos de outras vidas
feitas de sal e sonho verdadeiro.
Qual Ulisses, buscando, repentino,
a sua ilha, o seu rosto e o seu destino.

Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1997.

14 maio 2008

A manhã

Arturo Carrera

Tudo o que desfazes no que ouves
te escuta: o voejar do dormir...
Mais do que viver o voejar proibido,
o escândalo dissipado de um sonho:

As vozes,
os rostos apagados. As bocas como esferas
e os ocultos ritmos, enterrados passos
súbitos de um hóspede auspicioso:

A noite na casa vazia.
O sapo que na soleira espera
o beijo duro da esponjosa lua.

O braço cortado ao longe,
a mão que afunda
na cabeça que vai despertar:
“transborda-me conhecendo tua morte,
enfrenta-me à tua infinita redução”.

Porém nu, de pé, no chuveiro,
o orvalho mais ácido nas frotas
da manhã;
nu, sob o esgar impreciso
de um gorjeio prolongado e a visita,
na jactância da luz na penumbra

já é inteira a manhã
já é inteira a repetição buliçosa
do olhar que se transborda enamorado
não contido pela erudição dos
saberes, a obra, o crer conhecer
e sua “consciência culpada”.

É necessário conhecer esta morte.

Seu desejo infinito amplia-se
e se reduz: é o desejo
da obra e a pequena diferença
de sua duradeira dureza...

É a simulação da amordaçável
liberdade, que nos impõe como
em dois sonhos suspeitos,
um breve e confuso reconhecimento
do caos: a manhã.

O déjà vu é a morte,
um palco escuro recortado por suas
danças; um guizo que se agita
para o falcão jactancioso,
um alarme obsceno e brevíssimo
durante o pacto de olhar.

A morte que só escuta e
expele. Expele continuamente,
no que ouve, no que escuta...
a morte com seus brinquedos e
seus gatos.

Disseste: “devo permanecer sempre
pequena”.

Mais que o sonho:
o vazio se nos impõe por bocejos.

A chuva breve que nos abre uma acácia.
Os duros hexâmetros entorpecidos pelo sonho.

O pesadelo da bruma recortada, na qual
aparecem as medrosas geometrias da sombra.
Os bailes e as máscaras de um finíssimo
“óleo”: a manhã.

Alguém declina o nome de seu gato e o
nome do felino salta na sombra.
Desperto-me? Tentas acordar-me com
um punhado de sílabas de quatro folhas?

Alguém desdobra nesta mesma mesa onde
escrevo,
uma toalha crocante à luz e nas intactas,
pegajosas dobras.
E apóia uma xícara, um prato, um guardanapo
de papel sobre as pequeníssimas,
pintadas flores.

Começa
a manhã?

Ou ela nos vai desocultando uma outra vez
aquilo que para nós recomeça?

Os pequenos d’annunzios,
brevíssimos em sua aparição,

nas luzes veladas e nos movimentos
das vestes de papel.

Nu, no chuveiro
nu sob o jorro que sustenta
as imagens encantadas.

Nu na única sucessão
pressentida,
quase dolorosa. A insistência
desgarradora das aspersões insolúveis
do desejo:

nu
e a manhã do verão esfregando-me.
Um gato vem cair sobre meu peito
como uma chuva de açúcar dourado,
impalpável.

Nu, querendo ver
se poderia “estabelecer” desde fora
outros vínculos.

Empapado de orvalho avança
por outra festa que não me exclui.
As dobras da água na pele,

a luz que me desperta nas peneiras
do papel: gozo, apenas.

O puro som que rapta o desejo.

E eu irei,
com a língua queimada pela chuva
do sol: o vaivém do disco de carvão
da comadre cozinheira,
e eu também me afastaria
a mil anos luz
caso este dia me “retivesse”.

Semicerra os postigos para proteger-me
de um resplendor laranja e diz,
murmura,
“pronto”;
a xícara de leite perfumada com o
pintado café.

O gosto do leite, o café.
Esforço de reconhecer os dois sabores
unidos no sabor da manhã.
A manteiga fria e seu orvalho na espiral,
o caracol com o que a enervam sob o
metal de umas formas gordurosas.
A faca apoiada no frasco de mel
marcando com seu resplendor sombrio
a distância do primeiro piscar
desse “hoje”.

Conhece tua morte a água,
o macaréu do açúcar:
o corpo nu passando pela voz
da minha língua:

“Enquanto escreve, tudo se desvanece
menos o que contemplo”.

Aquele por quem passo engole o leite
e os sabores desconcertados.
Terás teu corpo transbordado
por suas marcas velozes de passante:

procure-te e não estás,
ouço tua voz detrás da bruma
perto da mulher dos pássaros:
“ser pequena, quero”.

Hóspede da manhã
(ainda para mim secreta) e
hóspede nu
transpassado pela certeza:

contemplo.
Escuto o moedor de chocolate
do desejo,
e essa repetição em seu nome nomeado

onde está?

O campo.

Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1984.

13 maio 2008

Sete anos de pastor Jacob servia

Luís de Camões

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo: – Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1595.

12 maio 2008

Um ano e sete meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completa um ano e sete meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 35.069 visitas haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior – Um ano e meio no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Augusto Meyer, Cassiano Ricardo, Cruz e Souza, Daniel J. Kevles, Juan Malpartida, Juan Ramón Jiménez, Konrad Lorenz, Luiza Neto Jorge, Raul de Carvalho, Roberto Piva, Robert E. Ricklefs, Rui Knopfli e William Golding. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Albert Bierstadt, Candido Portinari, Georg Heinrich Croll, James McNeill Whistler e William Orpen.

11 maio 2008

Arranjo em cinza e preto


James McNeill Whistler (1834-1903). Arrangement in grey and black No. 1: portrait of the artist’s mother [Whistler’s mother]. 1871.

Fonte da foto: Wikipedia.

10 maio 2008

Comfortably numb

Roger Waters

Hello,
Is there anybody in there
Just nod if you can hear me
Is there anyone at home
Come on now
I hear you’re feeling down
I can ease your pain
And get you on your feet again
Relax
I’ll need some information first
Just the basic facts
Can you show me where it hurts

There is no pain, you are receding
A distant ship smoke on the horizon
You are only coming through in waves
Your lips move but I can’t hear what you’re saying
When I was a child I had a fever
My hands felt just like two balloons
Now I’ve got that feeling once again
I can’t explain, you would not understand
This is not how I am
I have become comfortably numb

O.K.
Just a little pin prick
There’ll be no more aaaaaaaah!
But you may feel a little sick
Can you stand up?
I do believe it’s working, good
That’ll keep you going through the show
Come on it’s time to go

There is no pain, you are receding
A distant ship smoke on the horizon
You are only coming through in waves
Your lips move but I can’t hear what you’re saying
When I was a child
I caught a fleeting glimpse
Out of the corner of my eye
I turned to look but it was gone
I cannot put my finger on it now
The child is grown
The dream is gone
And I have become
Comfortably numb

Fonte: encarte que acompanha o álbum duplo The wall (1979), do Pink Floyd.

08 maio 2008

Serenidade és minha

Raul de Carvalho

Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem, serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.
Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anêmonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.

Vem, serenidade,
com país veloz e virginal das ondas,
com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas do cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninfos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.

Vem, serenidade,
com a paz e a guerra
derrubar as selvagens
florestas do instinto.

Vem, e levante
palácios na sombra.
Tem a paciência de quem deixa entre os lábios
um espaço absoluto.

Vem, e desponta,
oriunda dos mares,
orquídea fresca das noites vagabundas,
serena espécie de contentamento,
surpresa, plenitude.

Vem dos prédios sem almas e sem luzes,
dos números irreais de todas as semanas,
dos caixeiros sem cor e sem família,
das flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos bancos que os jardins afogam no silêncio,
das jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a chegada da força e da vertigem.

Vem, serenidade,
e põe no peito sujo dos ladrões
a cruz dos crimes sem cadeia,
põe na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.
Vem nos bicos dos pés para junto dos berços,
para junto das campas dos jovens que morreram,
para junto das artérias que servem
de campo para o trigo, de mar para os navios.

Vem, serenidade!
E do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja a confiança,
a grande confiança.
Grande como os teus braços,
grande serenidade!

E põe teus pés na terra,
e deixa que outras vozes
se comovam contigo
no Outono, no Inverno,
no Verão, na Primavera.

Vem, serenidade,
para que se não fale
nem de paz nem de guerra nem de Deus,
porque foi tudo junto
e guardado e levado
para a casa dos homens.

Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com as nuvens que proíbem o céu,
vem com o nevoeiro.

Vem com as meretrizes que chamam da janela,
o volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem, serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

Lembra-te da miséria dourada dos meus versos,
desta roupa de imagens que me cobre
o corpo silencioso,
das noites que passei perseguindo uma estrela,
do hálito, da fome, da doença, do crime,
com que dou vida e morte
a mim próprio e aos outros.

Vem, serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vicio de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.

Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
o papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.

Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe,
mais úmida que a pele marítima do cais,
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais livre que uma ave em seu vôo,
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.

Vem, serenidade,
para perto de mim e para nunca.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
De manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam por dentro da lisa e sonolenta
tarefa terminada,
quando um ramo de flores matinais
é uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais um postal da esperança enigmática,
quando os tacões furados pelos relógios podres,
pelas tardes por trás das grades e dos muros,
pelas convencionais visitas aos enfermos,
formam, em densos ângulos de humano desespero,
uma nuvem que aumenta a vã periferia
que rodeia a cidade,
é então que eu te peço como quem pede amor:
Vem, serenidade!
Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem, serenidade!

Com as horas maiúsculas do cio,
com os músculos inchados da preguiça,
vem, serenidade!

Vem, com o perturbante mistério dos cabelos,
o riso que não é da boca nem dos dentes
mas que se espalha, inteiro,
num corpo alucinado de bandeira.

Vem, serenidade,
antes que os passos da noite vigilante
arranquem as primeiras unhas da madrugada,
antes que as ruas cheias de corações de gás
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes,
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a revolta semeie florestas de gritos
e a raiva vá partir as amarras diárias.

Vem, serenidade,
leva-me num vagão de mercadorias,
num convés de algodão e borracha e madeira,
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na carnívora concha do sono.

Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos,
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe das sentinelas de mármore
que exigem passaporte a quem passa.
A bordo, no porão,
conversando com velhos tripulantes descalços,
crianças criminosas fugidas à policia,
moços contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados políticos que vão
em busca da perdida liberdade.

Vem, serenidade,
e leva-me contigo.
Com ciganos comendo amoras e limões,
e música de harmônio, e ciúme, e vinganças,
e subindo nos ares o livre e musical
facho rubro que une os seios da terra ao Sol.

Vem, serenidade!
Os comboios nos esperam.
Há famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando que batam, que empurrem, que irrompam
pela porta levíssima,
e que a porta se abra e por ela se entornem
os frutos e a justiça.

Serenidade, eu rezo:
Acorda minha Mãe quando ela dorme,
quando ela tem no rosto a solidão completa
de quem passou a noite perguntando por mim,
de quem perdeu de vista o meu destino.

Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.

Vem, serenidade,
e absolve os vencidos,
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos
e dá-lhes nomes novos,
novos ventos, novos portos, novos pulsos.

E recorda comigo o barulho das ondas,
as mentiras da fé, os amigos medrosos,
os assombros da Índia imaginada,
o espanto aprendiz da nossa fala,
ainda nossa, ainda bela, ainda livre
destes montes altíssimos que tapam
as veias ao Oceano.

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.
E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caos e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente,
Serenidade, és minha.

Fonte (para as sete estrofes iniciais): Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1955 e dedicado “À memória de Fernando Pessoa”.

06 maio 2008

À plena voz

Vladímir Maiakóvski

Respeitáveis camaradas
herdeiros e descendentes!
Deste tempo revolvendo
as fezes petrificadas,
estudando estes nossos dias trevosos,
talvez
não saibas
quem fui eu.
Talvez,
esmiuçando os problemas de hoje,
exibindo erudição,
um sábio
vos diga
que fui outrora
um cantor d’água fervida,
inimigo ferrenho
d’água da bica.
Professor!
Tire esses óculos-bicicletas!
Eu mesmo falarei
de meu tempo
e de mim.
Eu, inspetor sanitário,
carregador d’água,
fui chamado, mobilizado
pela Revolução,
parti para o front,
para longe dos jardins senhoriais da poesia,
caprichosa dama.
Ela tinha um belo jardim:
água,
ar,
um coração,
um leito.

“Desci a meu jardinzinho
Para colher o rosmaninho”.
Tais versos –
frisados a Mitreikas
cacheados a Krudreikas –
jorram de algumas bocas,
em outras são como baba.
Que o diabos os leve!
Aos suspiros não dão tréguas,
bandolinam às sacadas:
Tara-tina, tara-tina,
ten...
Pouco honroso seria,
se entre tais rosas
minha estátua surgisse,
na praça
onde cospem tuberculosos,
a meretriz,
a sífilis.
Eu,
de Agitprop
tenho a boca repleta.
Poderia fornecer-vos
romances aos metros;
seria mais fácil
e pagam melhor.
Mas eu me continha,
pisando a garganta
de minha própria canção.
Escutai,
camaradas herdeiros,
ao agitador,
ao locutor em chefe!
Abafando
a torrente de poemas,
passarei por cima
de líricos livrinhos
para falar aos vivos
como se vivo fosse.

Chegarei até vós
no comunismo longínquo,
mas não
como os cantores saudosistas
à moda de Iessiênin.
Meu verso chegará
através do cume dos séculos,
por cima das cabeças
de poetas e governos.
Meu verso chegará,
não como chega a seta lírica de Cupido,
nem como velha moeda
às mãos do numismata,
nem como a luz
das estrelas extintas.
Meu verso
com esforço
irromperá
de sob o peso dos anos
e grosseiro,
pesado,
gritante,
há de chegar,
como a nossos dias chegou
o aqueduto de Roma,
tal como o fizeram os escravos.
Entre pilhas de livros,
túmulos de poemas,
ao descobrir
o ferro de minhas estrofes,
vós, com respeito, as apalpareis,
como a velhas armas,
perigosas.
Eu,
com a palavra,
não costumo acariciar
ouvidos;
nem ciciar
semi-obscenidades
a orelhinhas virgens
escondidas,
sob cabelos inocentes.
Minhas páginas desfilando
como tropas,
as linhas do front
eu as passos em revista.
Os versos se perfilam
pesados como chumbo,
prontos para morrer,
ou para a glória imortal.
Os poemas postados
como um canhão atrás doutro,
apontam à distância,
com seus títulos
de letras enormes.
Os ditos mordazes,
minhas armas preferidas,
ei-los prontos,
sofreado o cavalo,
a lança em riste,
com rimas agudas,
prestes a galopar
lançando um grito de guerra.
E todas essa tropas
até os dentes armadas,
que vinte anos de vitórias
atravessaram,
as ti as dou,
até a última folha,
a ti,
planeta proletário.
Todo inimigo
da classe operária
é desde muito
meu inimigo jurado.
Tivemos
sob a bandeira vermelha,
anos de sacrifício,
dias de fome.
Mas,
cada tomo de Marx,
nós o abríamos
como se fossem janelas,
e, mesmo sem ler,
saberíamos
onde ficar,
de que lado
lutar.
Nós,
a dialética,
não aprendemos em Hegel.
No fragor dos combates
entrava-nos ela
pelos versos,
enquanto
sob nossas balas,
os burgueses fugiam,
como nós deles
fugíamos outrora.
Que atrás do gênio,
como viúva inconsolável,
a glória se arraste,
acompanhando o enterro.
Morre, verso meu,
morre como um soldado raso,
anônimo como tantos
tombados num assalto.
Pouco me importa
o bronze dos monumentos!
Rio-me
do fulgor frio dos mármores!
Partilhar a glória?
Aqui
entre nós:
tenhamos por único
monumento coletivo,
edificado
por todos,
o socialismo.
Herdeiros,
arrolhai vossos dicionários,
para que
do Lete dos léxicos
não saiam
detritos de palavras tais como
“prostituição”,
“tuberculose”,
“bloqueio”.
Para vós,
herdeiros,
ágeis e robustos,
o poeta limpou
os escarros tísicos,
com a língua áspera dos cartazes.
A cauda dos anos
dar-me-á o aspecto
de um fóssil fenomenal
de longa cauda.
Camarada vida,
a trote, mais rápido,
marchemos mais rápido,
ao fim dos dias qüinqüenais.
A mim,
nem um vintém sequer
os versos jamais me deram,
jamais ganhei mobília
do ebanista.
E salvo
duma camisa fresca,
sinceramente,
não preciso nada.
Diante do C.C.C.
dos anos claros
do futuro,
acima
dos finórios
e trapaceiros do verso,
levantarei
qual uma carteira bolchevique
todos os cem tornos
de meu livros partidários!

Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1930.

05 maio 2008

Pôr-do-sol 2


Albert Bierstadt (1830-1902). Sunset at Yosemite. 1863.

Fonte da foto: Museo de Arte Thyssen-Bornemisza.
Para ver outro “Pôr-do-sol”, clique aqui.

01 maio 2008

Paisagem noturna

Manuel Bandeira

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale...
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
– Em noss’alma criminosa,
O pavor se insinua...
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua...
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
– Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleve
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio vai romper... Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
– A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam...
Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longo das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando...
Assim a névoa azul paira sonhando...
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.

E o luar úmido... fino...
Amávico... tutelar...
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes...

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1917.

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