A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
31 maio 2008
História natural dos rios amazônicos
Michael Goulding
10. [...] Quando ocorreu a separação entre a América do Sul e a África, cada continente seguiu um caminho [evolutivo] diferente, que culminou em floras e faunas distintas. Isso resultou em um aumento considerável da diversidade da vida, pois ambos os continentes eram, em grande parte, tropicais, apresentando geografias complexas, e cada um continha uma grande bacia fluvial que foi coberta principalmente por floresta pluvial. É de certa forma irônico que um dos maiores perigos enfrentados atualmente pela diversidade amazônica seja a africanização de sua paisagem. Tal processo de africanização advém das sementes de gramíneas, semeadas depois da derrubada da florestal pluvial. As plantas superiores conquistaram a Amazônia com [florestas], não com pastagens. Entretanto, os promotores do desenvolvimento da Amazônia querem pastos e utilizam principalmente as espécies africanas por causa do seu vigor e características agressivas de colonização. A filosofia da pastagem resultou em um dos maiores, mais dispendiosos e descontrolados experimentos agronômicos da história do planeta. Duas décadas dessa experimentação custaram cerca de 5% da floresta pluvial amazônica, danificaram vários recursos pesqueiros importantes e aumentaram em muito a pobreza da região. Se você viajar ao longo da Transamazônica, que corta a parte sul da Amazônia, o primeiro foco do experimento de transformar [floresta] em pastagem, não verá sequer um vaqueiro amazônico a cavalo contemplando orgulhosamente seu rebanho a se alimentar de pastos verdejantes. Em vez disso, verá pobreza, gado esquelético e, principalmente, pastos abandonados e improdutivos, onde mudas da floresta pluvial e capins africanos digladiam-se pela conquista das clareiras. [...] Fonte: Goulding, M. 1997. História natural dos rios amazônicos. Brasília, Sociedade Civil Mamirauá, CNPq & Rainforest Alliance.
As belas meninas pardas são belas como as demais. Iguais por serem meninas, pardas por serem iguais.
Olham com olhos no chão. Falam com falas macias. Não são alegres nem tristes. São apenas como são todos os dias.
E as belas meninas pardas, estudam muito, muitos anos. Só estudam muito. Mais nada. Que o resto, trás desenganos...
Sabem muito escolarmente. Sabem pouco humanamente.
Nos passeios de domingo, andam sempre bem trajadas. Direitinhas. Aprumadas. Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada (Parece mal rir na rua!...)
E nunca viram a lua, debruçada sobre o rio, às duas da madrugada.
Sabem muito escolarmente. Sabem pouco humanamente.
E desejam, sobretudo, um casamento decente...
O mais, são histórias perdidas... Pois que importam outras vidas?... outras raças?..., outros mundos?... que importam outras meninas, felizes, ou desgraçadas?!...
As belas meninas pardas, dão boas mães de família, e merecem ser estimadas... Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1959.
(Fragmento) La chaise où je m’assieds, la natte où je me couche, La table où je t’écris, … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … Mes gros souliers ferrés, mon bâton, mon chapeau, Mês libres pêle-mêle entassés sur leur planche. … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … De cet espace étroit sont tout l’ameublement. – Lamartine, Jocelyn
1. Ossian o bardo é triste como a sombra Que seus cantos povoa. O Lamartine É monótono e belo como a noite, Como a lua no mar e o som das ondas... Mas pranteia uma eterna monodia, Tem na lira do gênio uma só corda, Fibra de amor e Deus que um sopro agita: Se desmaia de amor a Deus se volta, Se pranteia por Deus de amor suspira. Basta de Shakespeare. Vem tu agora, Fantástico alemão, poeta ardente Que ilumina o clarão das gotas pálidas Do nobre Johannisberg! Nos teus romances Meu coração deleita-se... Contudo, Parece-me que vou perdendo o gosto, Vou ficando blasé: passeio os dias Pelo meu corredor, sem companheiro, Sem ler, nem poetar. Vivo fumando. Minha casa não tem menores névoas Que as deste céu d’inverno... Solitário Passo as noites aqui e os dias longos; Dei-me agora ao charuto em corpo e alma; Debalde ali de um canto um beijo implora, Como a beleza que o Sultão despreza, Meu cachimbo alemão abandonado! Não passeio a cavalo e não namoro, Odeio o lasquenê... Palavra d’honra! Se assim me continuam por dois meses Os diabos azuis nos frouxos membros, Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.
2. Enchi o meu salão de mil figuras. Aqui voa um cavalo no galope, Um roxo dominó as costas volta A um cavaleiro de alemães bigodes, Um preto beberrão sobre uma pipa, Aos grossos beiços a garrafa aperta... Ao longo das paredes se derramam Extintas inscrições de versos mortos, E mortos ao nascer... Ali na alcova Em águas negras se levanta a ilha Romântica, sombria à flor das ondas De um rio que se perde na floresta... Um sonho de mancebo e de poeta, El-Dorado de amor que a mente cria Como um Éden de noites deleitosas... Era ali que eu podia no silêncio Junto de um anjo... Além o romantismo! Borra adiante folgaz caricatura Com tinta de escrever e pó vermelho A gorda face, o volumoso abdómen, E a grossa penca do nariz purpúreo Do alegre vendilhão entre botelhas
Metido num tonel... Na minha cômoda Meio encetado o copo, inda verbera As águas d’oiro do Cognac fogoso. Negreja ao pé narcótica botelha Que da essência de flores de laranja Guarda o licor que nectariza os nervos. Ali se mistura o charuto Havano Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo. A mesa escura cambaleia ao peso Do titâneo Digesto, e ao lado dele Childe Harold entreaberto ou Lamartine Mostra que o romantismo se descuida E que a poesia sobrenada sempre Ao pesadelo clássico do estudo.
3. Reina a desordem pela sala antiga, Desce a teia de aranha as bambinelas À estante pulvurenta. A roupa, os livros Sobre as poucas cadeiras se confundem. Marca a folha do Faust um colarinho Alfredo de Musset encobre, às vezes De Guerreiro, ou Valasco um texto obscuro. Como outrora do mundo os elementos Pela treva jogando cambalhotas, Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!
4. Na minha sala três retratos pendem. Ali Victor Hugo. Na larga fronte Erguidos luzem os cabelos loiros Como c’roa soberba. Homem sublime, O poeta de Deus e amores puros Que sonhou Triboulet, Marion Delorme E Esmeralda a Cigana... e diz a crônica Que foi aos tribunais parar um dia Por amar as mulheres dos amigos E adúlteros fazer romances vivos.
5. Aquele é Lamennais – o bardo santo, Cabeça de profeta, ungido crente, Alma de fogo na mundana argila Que as harpas de Sion vibrou na sombra, Pela noite do século chamando A Deus e à liberdade as loucas turbas. Por ele a George Sand morreu de amores, E dizem que... Defronte, aquele moço Pálido, pensativo, a fronte erguida, Olhar de Bonaparte em face Austríaca, Foi do homem secular as esperanças. No berço imperial um céu de Agosto Nos cantos de triunfo despertou-o... As águias de Wagram e de Marengo Abriam flamejando as longas asas Impregnadas do fumo dos combates, Na púrpura dos Césares, guardando-o. E o gênio do futuro parecia Predestiná-lo à glória. A história dele? Resta um crânio nas urnas do estrangeiro... Um loureiro sem flores nem sementes... E um passado de lágrimas... A terra Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma. Pode o mundo chorar sua agonia E os louros de seu pai na fronte dele Infecundos depor... Estrela morta, Só pode o menestrel sagrar-te prantos!
6. Junto a meu leito, com as mãos unidas, Olhos fitos no céu, cabelos soltos, Pálida sombra de mulher formosa Entre nuvens azuis pranteia orando. É um retrato talvez. Naquele seio Porventura sonhei doiradas noites: Talvez sonhando desatei sorrindo Alguma vez nos ombros perfumados Esses cabelos negros, e em delíquio Nos lábios dela suspirei tremendo. Foi-se a minha visão. E resta agora Aquele vaga sombra na parede – Fantasma de carvão e pó cerúleo, Tão vaga, tão extinta e fumacenta Como de um sonho o recordar incerto.
7. Em frente do meu leito, em negro quadro A minha amante dorme. É uma estampa De bela adormecida. A rósea face Parece em visos de um amor lascivo De fogos vagabundos acender-se... E como a nívea mão recata o seio... Oh! quantas vezes, ideal mimoso, Não encheste minh’alma de ventura, Quando louco, sedento e arquejante, Meus tristes lábios imprimi ardentes No poento vidro que te guarda o sono!
8. O pobre leito meu, desfeito ainda A febre aponta da noturna insônia. Aqui lânguido à noite debati-me Em vãos delírios anelando um beijo... E a donzela ideal nos róseos lábios, No doce berço do moreno seio Minha vida embalou estremecendo... Foram sonhos, contudo. A minha vida Se esgota em ilusões. E quando a fada Que diviniza meu pensar ardente Um instante em seus braços me descansa E roça a medo em meus ardentes lábios Um beijo que de amor me turva os olhos, Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte, Um espírito negro me desperta, O encanto do meu sonho se evapora E das nuvens de nácar da ventura Rolo tremendo à solidão da vida!
9. Oh! ter vinte anos sem gozar de leve A ventura de uma alma de donzela! E sem na vida ter sentido nunca Na suave atração de um róseo corpo Meus olhos turvos se fechar de gozo! Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas Passam tantas visões sobre meu peito! Palor de febre meu semblante cobre, Bate meu coração com tanto fogo! Um doce nome os lábios meus suspiram, Um nome de mulher... e vejo lânguida No véu suave de amorosas sombras Seminua, abatida, a mão no seio, Perfumada visão romper a nuvem, Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras O alento fresco e leve como a vida Passar delicioso... Que delírios! Acordo palpitante... inda a procuro; Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas Banham meus olhos, e suspiro e gemo... Imploro uma ilusão... tudo é silêncio! Só o leito deserto, a sala muda! Amorosa visão, mulher dos sonhos, Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto! Nunca virás iluminar meu peito Com um raio de luz desses teus olhos?
10. Meu pobre leito! eu amo-te contudo!
Aqui levei sonhando noites belas; As longas horas olvidei libando Ardentes gotas de licor doirado, Esqueci-as no fumo, na leitura Das páginas lascivas do romance...
Meu leito juvenil, da minha vida És a página d’oiro. Em teu asilo Eu sonho-me poeta e sou ditoso, E a mente errante devaneia em mundos Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes Do levante no sol entre odaliscas Momentos não passei que valem vidas! Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! que Margaridas, Que Elviras saudosas e Clarissas, Mais trêmulo que Faust, eu não beijava, Mais feliz que Don Juan e Lovelace Não apertei ao peito desmaiando!
Ó meus sonhos de amor e mocidade, Porque ser tão formosos, se devíeis Me abandonar tão cedo... e eu acordava Arquejando a beijar meu travesseiro?
11. Junto do leito meus poetas dormem – O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron – Na mesa confundidos. Junto deles Meu velho candeeiro se espreguiça E parece pedir a formatura. Ó meu amigo, ó velador noturno, Tu não me abandonaste nas vigílias, Quer eu perdesse a noite sobre os livros, Quer, sentado no leito, pensativo Relesse as minhas cartas de namoro! Quero-te muito bem, ó meu comparsa Nas doudas cenas de meu drama obscuro! E num dia de spleen, vindo a pachorra, Hei de evocar-te dum poema heróico Na rima de Camões e de Ariosto, Como padrão às lâmpadas futuras! ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
12. Aqui sobre esta mesa junto ao leito Em caixa negra dois retratos guardo. Não os profanem indiscretas vistas. Eu beijo-os cada noite: neste exílio Venero-os juntos e os prefiro unidos – Meu pai e minha mãe. – Se acaso um dia Na minha solidão me acharem morto, Não os abra ninguém. Sobre meu peito Lancem-nos em meu túmulo. Mais doce Será certo o dormir da noite negra Tendo no peito essas imagens puras.
13. Havia uma outra imagem que eu sonhava No meu peito na vida e no sepulcro. Mas ela não o quis... rompeu a tela Onde eu pintara meus doirados sonhos. Se posso no viver sonhar com ela, Essa trança beijar de seus cabelos E essas violetas inodoras, murchas, Nos lábios frios comprimir chorando, Não poderei na sepultura, ao menos, Sua imagem divina ter no peito.
14. Parece que chorei... Sinto na face Uma perdida lágrima rolando... Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem, Derrama no meu copo as gotas últimas Dessa garrafa negra... Eia! bebamos! És o sangue do gênio, o puro néctar Que as almas de poeta diviniza, O condão que abre o mundo das magias! Vem, fogoso Cognac! É só contigo Que sinto-me viver. Inda palpito, Quando os eflúvios dessas gotas áureas Filtram no sangue meu correndo a vida, Vibram-me os nervos e as artérias queimam, Os meus olhos ardentes se escurecem E no cérebro passam delirosos Assomos de poesia... Dentre a sombra Vejo num leito d’oiro a imagem dela Palpitante, que dorme e que suspira, Que seus braços me estende... Eu me esquecia: Faz-se noite; traz fogo e dois charutos E na mesa do estudo acende a lâmpada... Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1853.
Agora o vazio agora o deserto agora o vazio porque estou sem mim agora o deserto porque a vida que gerei negou a vida
chorai chorai comigo ou tapai-me a boca com pedras e com estrume chorai chorai chorai porque aquele que tinha em si a morte e a vida escolheu a morte recusou a vida
e eu não sei senão chorar neste deserto e eu não sei e eu não sei e o deserto é vazio e o deserto sou eu porque a vida que gerei escolheu a morte
essas vozes que ouvias meu menino essas vozes que ouviste e chamavam por ti não era a morte não que a morte é muda e quando a morte fala é porque a vida era a voz do que tu és e não conheces a chamar-te por ti a chamar o seu dono para lhe mostrar que toda a eternidade está contida no teu corpo que podes conhecer a eternidade pois não há outra além de conhecê-la no prazo temporário do teu ser
e só ai só em ti porque ela é tão finita como tu é tão mutável e tudo o que o não seja é só o nada nada nada
ah chorai comigo ou então matai-me
recusaste ser tudo quanto és recusaste encontrar-te face a face com o segredo de ti ou cegaste quando o viste e guardaste só nos olhos a visão que projectaste no vazio e então morreste antes de ser pois és profeta de mundos que não há e não do mundo
e morreste e morreste e morreste antes de seres e não deste o teu nome à tua vida e eu choro choro choro sobre o teu pavor de não teres alma de não seres tu
a alma do teu corpo e choro sobre mim que te gerei e pari morte porque negaste a vida que em mim tinha e que te dei e fiquei só e estou sem nada e o meu ventre está oco é o vazio e sequei e sequei como o deserto Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1969.
[...] Os ciclos dia-noite e a sucessão anual das estações (verão, outono, inverno, primavera) são conseqüências de dois movimentos executados simultaneamente pela Terra: a rotação diária em volta do seu próprio eixo e a translação anual em torno do Sol. Durante o movimento de rotação, é dia na face do planeta exposta ao Sol e noite na outra. E mais: embora o fotoperíodo – relação entre horas de céu claro (dia) e horas de céu escuro (noite) – esteja sempre mudando, em função do calendário e da latitude, ao final de um ano, qualquer ponto na superfície da Terra acumula exatamente um semestre de dias e um semestre de noites.
Diferenças sazonais no fotoperíodo tornam-se gradativamente mais acentuadas à medida que nos afastamos do equador terrestre (0 grau de latitude) e caminhamos em direção aos pólos Sul e Norte (90 graus de latitude sul e norte, respectivamente), de tal modo que dias cada vez mais longos no verão são compensados por dias cada vez mais curtos no inverno. [...]
Além do contraste no fotoperíodo, outra diferença notável entre verão e inverno está na intensidade da insolação, que varia ciclicamente ao longo do ano, acompanhando a variação que ocorre na inclinação dos raios solares em relação à superfície do planeta. A inclinação dos raios que incidem em cada hemisfério é mínima no primeiro dia do verão, mas aumenta gradativamente até alcançar seu valor máximo no primeiro dia do inverno, quando então volta a diminuir até alcançar novamente um valor mínimo no primeiro dia do verão seguinte, e assim por diante. Esse comportamento cíclico é uma conseqüência direta da forma esférica do planeta e do fato de que o seu eixo de rotação está inclinado (23 graus e meio) em relação ao plano de translação – a rigor, se a Terra girasse perpendicularmente em relação ao plano de translação, nós não teríamos as estações do ano.
Nas latitudes superiores a 23 graus e meio, tanto no Hemisfério Sul como no Norte (isto é, nas latitudes que ficam além dos Trópicos de Capricórnio e Câncer, respectivamente), a incidência dos raios solares nunca é perpendicular à superfície terrestre. Para os habitantes que moram na maior parte da região Sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e, com exceção de sua porção noroeste, também o Paraná), situada em latitudes que estão além do Trópico de Capricórnio, isso significa que eles nunca experimentam o Sol a pino, nem mesmo no verão.
A intensidade da insolação – quantidade de radiação incidente por unidade de área – que atinge uma região é inversamente proporcional ao ângulo de incidência dos raios. À medida que esse ângulo aumenta, outras duas variáveis também aumentam – a distância percorrida pelos raios na atmosfera e a área de incidência deles na superfície terrestre – e, consequentemente, a intensidade da insolação diminui. Como o ângulo de incidência dos raios solares é sempre maior no inverno, a intensidade da insolação sempre é menor nessa estação do ano, em qualquer localidade. [...]
Concluindo, portanto, o frio do inverno e o calor do verão são produzidos por mudanças periódicas que ocorrem no tempo de exposição (fotoperíodo) aos raios solares e na intensidade da insolação; além disso, o contraste entre o frio do inverno e o calor do verão tende a aumentar em localidades progressivamente mais afastadas do equador terrestre. Fonte: Costa, F. A. P. L. 2003. Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas. Juiz de Fora, Edição do Autor.
Uma noite, Uma noite toda cheia de murmúrios, de perfumes e da música das asas; Uma noite, Em que ardiam na nupcial e úmida sombra das campinas as lucíolas fantásticas, A meu lado lentamente, contra mim cingida toda, muda e pálida, Como se um pressentimento de amarguras infinitas, Até o fundo mais recôndito das fibras te agitasse, Pela senda que se perde no horizonte da planície Caminhavas; E nos céus Azulados e profundos esparzia a lua cheia sua claridade branca.
Tua sombra, Fina e lânguida, E a minha, Projetadas pelos raios do luar na areia triste Do caminho se juntavam E eram uma, E eram uma, E eram uma sombra única, Uma longa sombra única, Uma longa sombra única...
Esta noite Eu só, a alma Cheia assim das infinitas amarguras e aflições de tua morte, Separado de ti mesma pelo tempo, pelo túmulo e a distância, Pela escuridão sem termo Aonde a nossa voz não chega, Silencioso Pela senda caminhava...
E escutavam-se os ladridos dos cachorros para a lua, Lua pálida, E a coaxada Dos batráquios...
Senti frio. O mesmo frio que coaram no meu corpo Tuas faces e teus seios e teus dedos adorados Entre as cândidas brancuras Das cobertas mortuárias. Era o frio do sepulcro, sopro gélido da morte, Era o frio atroz do nada. Minha sombra, Projetada pelos raios do luar na areia triste, Solitária, Solitária, Pela estepe desolada caminhava. Foi então que a tua sombra Ágil e esbelta, Fina e lânguida, Como nessa extinta noite da passada primavera, Noite cheia de murmúrios, de perfumes e da música das asas, Acercou-se e foi com ela, Acercou-se e foi com ela, Acercou-se e foi com ela... Oh, as sombras enlaçadas! Oh, as sombras de dois corpos que se juntam às das almas! Oh, as sombras que se buscam pelas noites de tristezas e de lágrimas! Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1883.
no mais remoto isolamento da memória guardei preciosamente a sombra dos basaltos luminosos xistos frestas de granito janelas perto de sainte-victoire mais cinzenta que nunca pintava sem cessar pintava desde o alvorecer até que a noite descia obrigando a mão e o pensamento a desfalecer
trabalhei sempre a obsessiva luz mas a velhice aprisionou-me na vertigem muito longe na idade continuei a pintar sur motif parecia-me fazer lentos progressos quase compreendi os sobrepostos planos de um mesmo objecto sob a claridade d’aix
foi em 1906 montado num burro carregado com material ia por onde o cortante mistral passara deixando a descoberto o implacável sol modulava terras pinhais nuvens casas corpos mas a morte não consentiu que eu executasse as vislumbradas geométricas paisagens e comigo se perdeu o segredo dessa pirâmide que é sainte-victoire vibrando na cegante luminosidade do meio-dia Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1986. Para ver obra de Cézanne, clique aqui.
1. O conjunto de abetos escuros formava uma floresta que margeava ambos os lados do gelado curso de água. Um vento recente arrancara às arvores o seu manto de geada, e elas pareciam inclinar-se umas para as outras, negras e agourentas, na luz agonizante. Reinava sobre a paisagem um silêncio imenso. Aquela região era desolada, sem vida, sem movimento, tão só e gelada que a palavra tristeza não era suficiente para a descrever. Havia nela uma sugestão de riso, mas de um riso mais terrível que qualquer tristeza – um riso sem alegria, como o sorriso da esfinge, um riso frio como o gelo e com algo do horror da infalibilidade. Era a sabedoria despótica e incomunicável do riso eterno perante a futilidade e as agruras da vida. Era a terra do pólo Norte, agreste e gelado. London, J. 2003 [1906]. Caninos brancos. SP, Martin Claret.
Nenhum ruído de cães nas latas de lixo. (Aqui não há cães, nem latas de lixo.) Como também não há os mendigos. Em uma ou outra casa, se conversa, E o pó do café, escorrendo pelas janelas, Preteja as paredes dos fundos. Olga, desfolhada, não me veio esta noite. Ninguém mesmo tropeçou nas cadeiras da sala. Mas deve haver algum defunto, alguma Criança germinando dentro da noite. E não é sem tempo que Maria Balduína, A parteira, com uma luz acesa a desoras, Domine as mulheres grávidas da vila. Orozimbo pisa que nem distrito federal A Ladeira do Meio, o Beco dos Andrades, Enquanto Pedro Vieira ensaia u’a modinha qualquer (felizmente engasgada) à Anita Eleocádia. O subdelegado de polícia e a cadeia pública Dormem. Rápido, um vulto de preto, chicoteando Morcegos, a Rua de Cima atravessa, Como se fora a viúva do farmacêutico no cio, Como se fora o padre conduzindo a âmbula. Havia mesmo uma chusma de cavalos mancos Pelas ruas. As almas, pela noite, andavam Como símios. Nem todo o arraial dormia. O próprio cemitério matutava. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1946.
Vês esse Sol de luzes coroado? Em pérolas a Aurora convertida? Vês a Lua, de estrelas guarnecida? Vês o Céu, de planetas adornado?
O Céu deixemos: vês naquele prado A rosa com razão desvanecida? A açucena por alva presumida? O cravo por galã lisonjeado?
Deixa o prado: vem cá, minha adorada: Vês desse mar a esfera cristalina Em sucessivo aljôfar desatada?
Parece aos olhos ser de prata fina... Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada À vista do teu rosto, Catarina. Fonte: Spina, S. 1995. A poesia de Gregório de Matos. SP, Edusp.
Um dos benefícios que pôde ser extraído de um sombrio episódio conhecido como crise de energia é o de que esta crise conduziu à redescoberta de nossa mais rica fonte de energia: o Sol. Mas parece que estamos criando tantos mitos acerca da energia solar quanto o número de mitos existentes sobre o próprio Sol. Alguns dos mais populares são: a energia solar só é utilizável nas regiões muito ensolaradas, como o Arizona; é ineficaz durante a noite e nos dias nublados; a luz solar é muito difusa para prover as altas temperaturas necessárias à geração de energia elétrica e outras fontes de alta qualidade; se a energia solar fosse verdadeiramente possível e valesse a pena economicamente, as grandes empresas elétricas a teria desenvolvido.
Estes mitos têm sido amplamente divulgados pelos relatórios oficiais sobre a crise de energia. Por exemplo: há poucos anos, um exaustivo relatório do NPC (Conselho Nacional de Petróleo), constituído em sua maior parte por membros de equipes das companhias de petróleo, como também por um grupo do Departamento do Interior, sobre as perspectivas para a energia americana, oferecia a quintessência da mitologia da energia solar: “Em conseqüência de ser difusa e intermitente, a energia solar não está prevista para ser usada em larga escala nos próximos 15 anos, mesmo com significativos melhoramentos. Tanto as grandes áreas nas quais a energia deve ser coletada quanto o custo de equipamentos de coletas e conversão impedem o uso intensivo de aparelhos solares tais como os evaporadores, destiladores, aquecedores, refrigeradores, caldeiras, células etc.”. [...] Fonte: Commoner, B. 1986 [1978]. Energias alternativas. RJ, Record.
Jangadas amarelas, azuis, brancas, logo invadem o verde mar bravio, o mesmo que Iracema, em arrepio, sentiu banhar de sonho as suas ancas. Que importa a lenda, ao longe, na história, se elas cruzam, ligeiras, nesse instante, o horizonte esticado da memória, tornando o que se vê mito incessante? As velas vão e voltam, incontidas, sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro repete antigos gestos de outras vidas feitas de sal e sonho verdadeiro. Qual Ulisses, buscando, repentino, a sua ilha, o seu rosto e o seu destino. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1997.
Tudo o que desfazes no que ouves te escuta: o voejar do dormir... Mais do que viver o voejar proibido, o escândalo dissipado de um sonho:
As vozes, os rostos apagados. As bocas como esferas e os ocultos ritmos, enterrados passos súbitos de um hóspede auspicioso:
A noite na casa vazia. O sapo que na soleira espera o beijo duro da esponjosa lua.
O braço cortado ao longe, a mão que afunda na cabeça que vai despertar: “transborda-me conhecendo tua morte, enfrenta-me à tua infinita redução”.
Porém nu, de pé, no chuveiro, o orvalho mais ácido nas frotas da manhã; nu, sob o esgar impreciso de um gorjeio prolongado e a visita, na jactância da luz na penumbra
já é inteira a manhã já é inteira a repetição buliçosa do olhar que se transborda enamorado não contido pela erudição dos saberes, a obra, o crer conhecer e sua “consciência culpada”.
É necessário conhecer esta morte.
Seu desejo infinito amplia-se e se reduz: é o desejo da obra e a pequena diferença de sua duradeira dureza...
É a simulação da amordaçável liberdade, que nos impõe como em dois sonhos suspeitos, um breve e confuso reconhecimento do caos: a manhã.
O déjà vu é a morte, um palco escuro recortado por suas danças; um guizo que se agita para o falcão jactancioso, um alarme obsceno e brevíssimo durante o pacto de olhar.
A morte que só escuta e expele. Expele continuamente, no que ouve, no que escuta... a morte com seus brinquedos e seus gatos.
Disseste: “devo permanecer sempre pequena”.
Mais que o sonho: o vazio se nos impõe por bocejos.
A chuva breve que nos abre uma acácia. Os duros hexâmetros entorpecidos pelo sonho.
O pesadelo da bruma recortada, na qual aparecem as medrosas geometrias da sombra. Os bailes e as máscaras de um finíssimo “óleo”: a manhã.
Alguém declina o nome de seu gato e o nome do felino salta na sombra. Desperto-me? Tentas acordar-me com um punhado de sílabas de quatro folhas?
Alguém desdobra nesta mesma mesa onde escrevo, uma toalha crocante à luz e nas intactas, pegajosas dobras. E apóia uma xícara, um prato, um guardanapo de papel sobre as pequeníssimas, pintadas flores.
Começa a manhã?
Ou ela nos vai desocultando uma outra vez aquilo que para nós recomeça?
Os pequenos d’annunzios, brevíssimos em sua aparição,
nas luzes veladas e nos movimentos das vestes de papel.
Nu, no chuveiro nu sob o jorro que sustenta as imagens encantadas.
Nu na única sucessão pressentida, quase dolorosa. A insistência desgarradora das aspersões insolúveis do desejo:
nu e a manhã do verão esfregando-me. Um gato vem cair sobre meu peito como uma chuva de açúcar dourado, impalpável.
Nu, querendo ver se poderia “estabelecer” desde fora outros vínculos.
Empapado de orvalho avança por outra festa que não me exclui. As dobras da água na pele,
a luz que me desperta nas peneiras do papel: gozo, apenas.
O puro som que rapta o desejo.
E eu irei, com a língua queimada pela chuva do sol: o vaivém do disco de carvão da comadre cozinheira, e eu também me afastaria a mil anos luz caso este dia me “retivesse”.
Semicerra os postigos para proteger-me de um resplendor laranja e diz, murmura, “pronto”; a xícara de leite perfumada com o pintado café.
O gosto do leite, o café. Esforço de reconhecer os dois sabores unidos no sabor da manhã. A manteiga fria e seu orvalho na espiral, o caracol com o que a enervam sob o metal de umas formas gordurosas. A faca apoiada no frasco de mel marcando com seu resplendor sombrio a distância do primeiro piscar desse “hoje”.
Conhece tua morte a água, o macaréu do açúcar: o corpo nu passando pela voz da minha língua:
“Enquanto escreve, tudo se desvanece menos o que contemplo”.
Aquele por quem passo engole o leite e os sabores desconcertados. Terás teu corpo transbordado por suas marcas velozes de passante:
procure-te e não estás, ouço tua voz detrás da bruma perto da mulher dos pássaros: “ser pequena, quero”.
Hóspede da manhã (ainda para mim secreta) e hóspede nu transpassado pela certeza:
contemplo. Escuto o moedor de chocolate do desejo, e essa repetição em seu nome nomeado
onde está?
O campo. Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1984.
Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia, passava, contentando-se com vê-la; porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos, dizendo: – Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1595.
Nesta segunda-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completa um ano e sete meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 35.069 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Um ano e meio no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Augusto Meyer, Cassiano Ricardo, Cruz e Souza, Daniel J. Kevles, Juan Malpartida, Juan Ramón Jiménez, Konrad Lorenz, Luiza Neto Jorge, Raul de Carvalho, Roberto Piva, Robert E. Ricklefs, Rui Knopfli e William Golding. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Albert Bierstadt, Candido Portinari, Georg Heinrich Croll, James McNeill Whistler e William Orpen.
James McNeill Whistler (1834-1903). Arrangement in grey and black No. 1: portrait of the artist’s mother [Whistler’s mother]. 1871. Fonte da foto: Wikipedia.
Hello, Is there anybody in there Just nod if you can hear me Is there anyone at home Come on now I hear you’re feeling down I can ease your pain And get you on your feet again Relax I’ll need some information first Just the basic facts Can you show me where it hurts
There is no pain, you are receding A distant ship smoke on the horizon You are only coming through in waves Your lips move but I can’t hear what you’re saying When I was a child I had a fever My hands felt just like two balloons Now I’ve got that feeling once again I can’t explain, you would not understand This is not how I am I have become comfortably numb
O.K. Just a little pin prick There’ll be no more aaaaaaaah! But you may feel a little sick Can you stand up? I do believe it’s working, good That’ll keep you going through the show Come on it’s time to go
There is no pain, you are receding A distant ship smoke on the horizon You are only coming through in waves Your lips move but I can’t hear what you’re saying When I was a child I caught a fleeting glimpse Out of the corner of my eye I turned to look but it was gone I cannot put my finger on it now The child is grown The dream is gone And I have become Comfortably numb Fonte: encarte que acompanha o álbum duplo The wall (1979), do Pink Floyd.
Vem, serenidade! Vem cobrir a longa fadiga dos homens, este antigo desejo de nunca ser feliz a não ser pela dupla humidade das bocas.
Vem, serenidade! Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros e com que os ombros subam à altura dos lábios, faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos. Carrega para a cama dos desempregados todas as coisas verdes, todas as coisas vis fechadas no cofre das águas: os corais, as anêmonas, os monstros sublunares, as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.
Vem, serenidade, com país veloz e virginal das ondas, com o martírio leve dos amantes sem Deus, com o cheiro sensual das pernas do cinema, com o vinho e as uvas e o frémito das virgens, com o macio ventre das mulheres violadas, com os filhos que os pais amaldiçoam, com as lanternas postas à beira dos abismos, e os segredos e os ninfos e o feno e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo, com Deus molhando os olhos e as esperanças dos pobres.
Vem, serenidade, com a paz e a guerra derrubar as selvagens florestas do instinto.
Vem, e levante palácios na sombra. Tem a paciência de quem deixa entre os lábios um espaço absoluto.
Vem, e desponta, oriunda dos mares, orquídea fresca das noites vagabundas, serena espécie de contentamento, surpresa, plenitude.
Vem dos prédios sem almas e sem luzes, dos números irreais de todas as semanas, dos caixeiros sem cor e sem família, das flores que rebentam nas mãos dos namorados, dos bancos que os jardins afogam no silêncio, das jarras que os marujos trazem sempre da China, dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam a chegada da força e da vertigem.
Vem, serenidade, e põe no peito sujo dos ladrões a cruz dos crimes sem cadeia, põe na boca dos pobres o pão que eles precisam, põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence. Vem nos bicos dos pés para junto dos berços, para junto das campas dos jovens que morreram, para junto das artérias que servem de campo para o trigo, de mar para os navios.
Vem, serenidade! E do salgado bojo das tuas naus felizes despeja a confiança, a grande confiança. Grande como os teus braços, grande serenidade!
E põe teus pés na terra, e deixa que outras vozes se comovam contigo no Outono, no Inverno, no Verão, na Primavera.
Vem, serenidade, para que se não fale nem de paz nem de guerra nem de Deus, porque foi tudo junto e guardado e levado para a casa dos homens.
Vem, serenidade, vem com a madrugada, vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua, com as nuvens que proíbem o céu, vem com o nevoeiro.
Vem com as meretrizes que chamam da janela, o volume dos corpos saciados na cama, as mil aparições do amor nas esquinas, as dívidas que os pais nos pagam em segredo, as costas que os marinheiros levantam quando arrastam o mar pelas ruas.
Vem, serenidade, e lembra-te de nós, que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio, um sítio aonde a morte tem todos os direitos.
Lembra-te da miséria dourada dos meus versos, desta roupa de imagens que me cobre o corpo silencioso, das noites que passei perseguindo uma estrela, do hálito, da fome, da doença, do crime, com que dou vida e morte a mim próprio e aos outros.
Vem, serenidade, e acaba com o vício de plantar roseiras no duro chão dos dias, vicio de beber água com o copo do vinho milagroso do sangue.
Vem, serenidade, não apagues ainda a lâmpada que forra os cantos do meu quarto, o papel com que embrulho meus rios de aventura em que vai navegando o futuro.
Vem, serenidade! E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe, mais úmida que a pele marítima do cais, mais branca que o soluço, o silêncio, a origem, mais livre que uma ave em seu vôo, mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo, mais humana e alegre que o sorriso das noivas, do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.
Vem, serenidade, para perto de mim e para nunca. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... De manhã, quando as carroças de hortaliça chiam por dentro da lisa e sonolenta tarefa terminada, quando um ramo de flores matinais é uma ofensa ao nosso limitado horizonte, quando os astros entregam ao carteiro surpreendido mais um postal da esperança enigmática, quando os tacões furados pelos relógios podres, pelas tardes por trás das grades e dos muros, pelas convencionais visitas aos enfermos, formam, em densos ângulos de humano desespero, uma nuvem que aumenta a vã periferia que rodeia a cidade, é então que eu te peço como quem pede amor: Vem, serenidade! Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis, vem, serenidade!
Com as horas maiúsculas do cio, com os músculos inchados da preguiça, vem, serenidade!
Vem, com o perturbante mistério dos cabelos, o riso que não é da boca nem dos dentes mas que se espalha, inteiro, num corpo alucinado de bandeira.
Vem, serenidade, antes que os passos da noite vigilante arranquem as primeiras unhas da madrugada, antes que as ruas cheias de corações de gás se percam no fantástico cenário da cidade, antes que, nos pés dormentes dos pedintes, a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos, a revolta semeie florestas de gritos e a raiva vá partir as amarras diárias.
Vem, serenidade, leva-me num vagão de mercadorias, num convés de algodão e borracha e madeira, na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes, na carnívora concha do sono.
Leva-me para longe deste bíblico espaço, desta confusão abúlica dos mitos, deste enorme pulmão de silêncio e vergonha. Longe das sentinelas de mármore que exigem passaporte a quem passa. A bordo, no porão, conversando com velhos tripulantes descalços, crianças criminosas fugidas à policia, moços contrabandistas, negociantes mouros, emigrados políticos que vão em busca da perdida liberdade.
Vem, serenidade, e leva-me contigo. Com ciganos comendo amoras e limões, e música de harmônio, e ciúme, e vinganças, e subindo nos ares o livre e musical facho rubro que une os seios da terra ao Sol.
Vem, serenidade! Os comboios nos esperam. Há famílias inteiras com o jantar na mesa, aguardando que batam, que empurrem, que irrompam pela porta levíssima, e que a porta se abra e por ela se entornem os frutos e a justiça.
Serenidade, eu rezo: Acorda minha Mãe quando ela dorme, quando ela tem no rosto a solidão completa de quem passou a noite perguntando por mim, de quem perdeu de vista o meu destino.
Ajuda-me a cumprir a missão de poeta, a confundir, numa só e lúcida claridade, a palavra esquecida no coração do homem.
Vem, serenidade, e absolve os vencidos, regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos e dá-lhes nomes novos, novos ventos, novos portos, novos pulsos.
E recorda comigo o barulho das ondas, as mentiras da fé, os amigos medrosos, os assombros da Índia imaginada, o espanto aprendiz da nossa fala, ainda nossa, ainda bela, ainda livre destes montes altíssimos que tapam as veias ao Oceano.
Vem, serenidade, e faz que não fiquemos doentes, só de ver que a beleza não nasce dia a dia na terra. E reúne os pedaços dos espelhos partidos, e não cedas demais ao vislumbre de vermos a nossa idade exacta outra vez paralela ao percurso dos pássaros.
E dá asas ao peso da melancolia, e põe ordem no caos e carne nos espectros, e ensina aos suicidas a volúpia do baile, e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem, e não apagues nunca o fogo que os consome, o impulso que os coloca, nus e iluminados, no topo das montanhas, no extremo dos mastros na chaminé do sangue.
Serenidade, assiste à multiplicação original do Mundo: Um manto terníssimo de espuma, um ninho de corais, de limos, de cabelos, um universo de algas despidas e retrácteis, um polvo de ternura deliciosa e fresca.
Vem, e compartilha das mais simples paixões, do jogo que jogamos sem parceiro, dos humilhantes nós que a garganta irradia, da suspeita violenta, do inesperado abrigo.
Vem, com teu frio de esquecimento, com a tua alucinante e alucinada mão, e põe, no religioso ofício do poema, a alegria, a fé, os milagres, a luz!
Vem, e defende-me da traição dos encontros, do engano na presença de Aquele cuja palavra é silêncio, cujo corpo é de ar, cujo amor é demais absoluto e eterno para ser meu, que o amo.
Para sempre irreal, para sempre obscena, para sempre inocente, Serenidade, és minha. Fonte (para as sete estrofes iniciais): Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1955 e dedicado “À memória de Fernando Pessoa”.
Respeitáveis camaradas herdeiros e descendentes! Deste tempo revolvendo as fezes petrificadas, estudando estes nossos dias trevosos, talvez não saibas quem fui eu. Talvez, esmiuçando os problemas de hoje, exibindo erudição, um sábio vos diga que fui outrora um cantor d’água fervida, inimigo ferrenho d’água da bica. Professor! Tire esses óculos-bicicletas! Eu mesmo falarei de meu tempo e de mim. Eu, inspetor sanitário, carregador d’água, fui chamado, mobilizado pela Revolução, parti para o front, para longe dos jardins senhoriais da poesia, caprichosa dama. Ela tinha um belo jardim: água, ar, um coração, um leito.
“Desci a meu jardinzinho Para colher o rosmaninho”. Tais versos – frisados a Mitreikas cacheados a Krudreikas – jorram de algumas bocas, em outras são como baba. Que o diabos os leve! Aos suspiros não dão tréguas, bandolinam às sacadas: Tara-tina, tara-tina, ten... Pouco honroso seria, se entre tais rosas minha estátua surgisse, na praça onde cospem tuberculosos, a meretriz, a sífilis. Eu, de Agitprop tenho a boca repleta. Poderia fornecer-vos romances aos metros; seria mais fácil e pagam melhor. Mas eu me continha, pisando a garganta de minha própria canção. Escutai, camaradas herdeiros, ao agitador, ao locutor em chefe! Abafando a torrente de poemas, passarei por cima de líricos livrinhos para falar aos vivos como se vivo fosse.
Chegarei até vós no comunismo longínquo, mas não como os cantores saudosistas à moda de Iessiênin. Meu verso chegará através do cume dos séculos, por cima das cabeças de poetas e governos. Meu verso chegará, não como chega a seta lírica de Cupido, nem como velha moeda às mãos do numismata, nem como a luz das estrelas extintas. Meu verso com esforço irromperá de sob o peso dos anos e grosseiro, pesado, gritante, há de chegar, como a nossos dias chegou o aqueduto de Roma, tal como o fizeram os escravos. Entre pilhas de livros, túmulos de poemas, ao descobrir o ferro de minhas estrofes, vós, com respeito, as apalpareis, como a velhas armas, perigosas. Eu, com a palavra, não costumo acariciar ouvidos; nem ciciar semi-obscenidades a orelhinhas virgens escondidas, sob cabelos inocentes. Minhas páginas desfilando como tropas, as linhas do front eu as passos em revista. Os versos se perfilam pesados como chumbo, prontos para morrer, ou para a glória imortal. Os poemas postados como um canhão atrás doutro, apontam à distância, com seus títulos de letras enormes. Os ditos mordazes, minhas armas preferidas, ei-los prontos, sofreado o cavalo, a lança em riste, com rimas agudas, prestes a galopar lançando um grito de guerra. E todas essa tropas até os dentes armadas, que vinte anos de vitórias atravessaram, as ti as dou, até a última folha, a ti, planeta proletário. Todo inimigo da classe operária é desde muito meu inimigo jurado. Tivemos sob a bandeira vermelha, anos de sacrifício, dias de fome. Mas, cada tomo de Marx, nós o abríamos como se fossem janelas, e, mesmo sem ler, saberíamos onde ficar, de que lado lutar. Nós, a dialética, não aprendemos em Hegel. No fragor dos combates entrava-nos ela pelos versos, enquanto sob nossas balas, os burgueses fugiam, como nós deles fugíamos outrora. Que atrás do gênio, como viúva inconsolável, a glória se arraste, acompanhando o enterro. Morre, verso meu, morre como um soldado raso, anônimo como tantos tombados num assalto. Pouco me importa o bronze dos monumentos! Rio-me do fulgor frio dos mármores! Partilhar a glória? Aqui entre nós: tenhamos por único monumento coletivo, edificado por todos, o socialismo. Herdeiros, arrolhai vossos dicionários, para que do Lete dos léxicos não saiam detritos de palavras tais como “prostituição”, “tuberculose”, “bloqueio”. Para vós, herdeiros, ágeis e robustos, o poeta limpou os escarros tísicos, com a língua áspera dos cartazes. A cauda dos anos dar-me-á o aspecto de um fóssil fenomenal de longa cauda. Camarada vida, a trote, mais rápido, marchemos mais rápido, ao fim dos dias qüinqüenais. A mim, nem um vintém sequer os versos jamais me deram, jamais ganhei mobília do ebanista. E salvo duma camisa fresca, sinceramente, não preciso nada. Diante do C.C.C. dos anos claros do futuro, acima dos finórios e trapaceiros do verso, levantarei qual uma carteira bolchevique todos os cem tornos de meu livros partidários! Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1930.
A sombra imensa, a noite infinita enche o vale... E lá do fundo vem a voz Humilde e lamentosa Dos pássaros da treva. Em nós, – Em noss’alma criminosa, O pavor se insinua... Um carneiro bale. Ouvem-se pios funerais. Um como grande e doloroso arquejo Corta a amplidão que a amplidão continua... E cadentes, metálicos, pontuais, Os tanoeiros do brejo, – Os vigias da noite silenciosa, Malham nos aguaçais.
Pouco a pouco, porém, a muralha de treva Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleve A sombria massa Das serranias.
O plenilúnio vai romper... Já da penumbra Lentamente reslumbra A paisagem de grandes árvores dormentes E cambiantes sutis, tonalidades fugidias, Tintas deliqüescentes Mancham para o levante as nuvens langorosas.
Enfim, cheia, serena, pura, Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, Fazendo levantar a fronte Dos poetas e das almas amorosas, Dissipando o temor nas consciências medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura, – A Lua Assoma à crista da montanha. Em sua luz se banha A solidão cheia de vozes que segredam... Em voluptuoso espreguiçar de forma nua As névoas enveredam No vale. São como alvas, longas charpas Suspensas no ar ao longo das escarpas. Lembram os rebanhos de carneiros Quando, Fugindo ao sol a pino, Buscam oitões, adros hospitaleiros E lá quedam tranqüilos ruminando... Assim a névoa azul paira sonhando... As estrelas sorriem de escutar As baladas atrozes Dos sapos.
E o luar úmido... fino... Amávico... tutelar... Anima e transfigura a solidão cheia de vozes... Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1917.