31 março 2023

O país ultrapassa a marca das 700 mil mortes registradas

Felipe A. P. L. Costa [*].

RESUMO. – Este artigo atualiza as estatísticas (mundiais e nacionais) a respeito da pandemia divulgadas em artigo anterior (aqui). Em escala planetária, já foram registrados 684 milhões de casos e 6,83 milhões de mortes [1]; em escala nacional, 37,3 milhões de casos e 700 mil mortes.

*

1. ESTATÍSTICAS MUNDIAIS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES.

Levando em conta as estatísticas obtidas no início da tarde de hoje (30/3), eis um resumo da situação mundial.

(A) – Em números absolutos, os 20 países mais afetados estão a concentrar 74% dos casos (de um total de 683.688.663) e 69% das mortes (de um total de 6.829.605) [2].

(B) – Nesses 20 países, 487 milhões de indivíduos receberam alta, o que corresponde a 96% dos casos. Em escala global, 657 milhões de indivíduos já receberam alta.

(C) – Os 20 primeiros países da lista podem ser arranjados em 11 grupos: (a) Entre 100 e 110 milhões de casos – Estados Unidos; (b) Entre 40 e 45 milhões – Índia; (c) Entre 35 e 40 milhões – França, Alemanha e Brasil; (d) Entre 30 e 35 milhões – Japão e Coreia do Sul; (e) Entre 25 e 30 milhões – Itália; (f) Entre 20 e 25 milhões – Reino Unido e Rússia; (g) Entre 15 e 20 milhões – Turquia (estatísticas congeladas); (h) Entre 12 e 15 milhões – Espanha; (i) Entre 10 e 12 milhões – Vietnã, Austrália, Argentina e Taiwan; (j) Entre 8 e 10 milhões – Países Baixos; e (k) Entre 6 e 8 milhões – Irã, México e Indonésia.

2. ESTATÍSTICAS BRASILEIRAS: SEMANA 19-25/3.

De acordo com o Ministério da Saúde, na semana encerrada no último domingo (19-25/2), foram registrados em todo o país mais 53.986 casos e 322 mortes.

Em relação aos números da semana anterior, a primeira estatística caiu e a segunda subiu (12-18/3: 59.163 casos e 283 mortes). (A taxas de crescimento também estão a seguir trajetórias distintas: a primeira caiu, a segunda subiu.)

Teríamos chegado assim a um total de 37.258.663 casos e 700.239 mortes.

3. CODA.

Conforme vários observadores e estudiosos haviam previsto, meses atrás, a Covid-19 está a se converter em uma espécie de gripe forte, ainda que de efeito mais duradouro e potencialmente mais danoso.

Em todo caso, a luta contra a pandemia ainda não terminou.

Por enquanto, nós, o povo, devemos ter em mente o seguinte: Máscaras e vacinas seguem sendo as melhores armas que nós temos para (i) impedir a ocorrência de surtos locais; e (ii) impedir o surgimento de novidades evolutivas que venham a promover uma nova e repentina escalada dos números. (Lembrando que a vacina combate a doença, mas não impede o contágio. O que pode impedir o contágio é o uso correto de máscara facial.)

*

NOTAS.

[*] Há uma campanha de comercialização envolvendo os livros do autor – ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para mais informações ou para adquirir (por via postal) os quatro volumes (ou algum volume específico), faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Os números destoam dos que vinham sendo divulgados em meus balanços, sobretudo por uma questão metodológica: Todas as estatísticas estão sendo extraídas agora do painel Worldometer: Coronavirus (Dadax, EUA), e não mais do painel Mapping 2019-nCov (Johns Hopkins University, EUA). Os dois painéis concordavam em quase tudo, com apenas uma ou outra exceção. A diferença mais gritante estava nas estatísticas chinesas: Tanto no número de casos como no de mortes, o painel que agora estou a seguir registra apenas o equivalente a um quinto ou um décimo dos números que eram registrados no outro painel.

[2] Para detalhes e discussões a respeito do comportamento da pandemia desde março de 2020, tanto em escala mundial como nacional, ver os volumes da coletânea A pandemia e a lenta agonia de um país desgovernado, vols. 1-5 (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Sobre o cálculo das taxas de crescimento, ver qualquer um dos três primeiros volumes.

* * *

29 março 2023

Os metalúrgicos e eu

Henfil

São Paulo, 16 de abril de 1980.

Mãe,

A senhora já viu Kramer X Kramer? Eu vou ver se pego a sessão das 8 pra poder depois assistir Sacco e Vanzetti na das 10. Tranquilo, porque os metalúrgicos estão reivindicando por mim.

Arrumei minha estante e separei um livro de Reich e dois romances policiais pra ler neste fim de semana. Claro que vai dar tempo. Os metalúrgicos estão em greve por mim.

Segunda-feira vai ter um concerto de jazz com um grupo de reggae quentíssimo. Vai estar lotadíssimo. Acho que vou conseguir lugar. Tudo bem, os metalúrgicos estão fazendo piquete por mim.

Terça tenho transa do corpo e aula de dança das 9 às 11. Vou ficar podre. Tomo banho e cama. Os metalúrgicos estão fazendo vigília no sindicato por mim.

Quarta deve ter algum jogão na Taça de Ouro. Vou ficar de plantão, na última hora a Bandeirantes sempre transmite. Relax: os metalúrgicos estão sendo presos por mim.

Quinta nobre é Chico City. Não sei se fico ou se vou ver um debate sobre os novos partidos lá no Tuca. Bom, se não der pra ir, encontro o pessoal depois lá no Bar Bosa prum chope com filé. Lembrar de embrulhar o que sobrar, porque os metalúrgicos estão passando fome há 25 dias por mim.

Sexta-feira é dia de pagamento. Se não saiu o reajuste de 15%, nem minha estabilidade no emprego, nem 100% por hora extra... êpa! É porque os metalúrgicos não lutaram direito por mim.

Fonte: Henfil. 1980. Cartas da mãe. RJ, Codecri.

26 março 2023

11 teses sobre educação e política

Dermeval Saviani

As reflexões expostas podem ser ordenadas e sintetizadas através das teses seguintes:

Tese 1: Não existe identidade entre educação e política.

Corolário: educação e política são fenômenos inseparáveis, porém efetivamente distintos entre si.

Tese 2: Toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão política.

Tese 3: Toda prática política também contém, por sua vez, inevitavelmente uma dimensão educativa.

Obs.: As teses 2 e 3 decorrem necessariamente da inseparabilidade entre educação e política afirmada no corolário da tese 1.

Tese 4: A explicitação da dimensão política da prática educativa está condicionada à explicitação da especificidade da prática educativa.

Tese 5: A explicitação da dimensão educativa da prática política está, por sua vez, condicionada à explicitação da especificidade da prática política.

Obs.: As teses 4 e 5 decorrem necessariamente da efetiva distinção entre educação e política afirmada no corolário da tese 1. Com efeito, só é possível captar a dimensão política da prática educativa e vice-versa, na medida em que essas práticas forem captadas como efetivamente distintas uma da outra.

Tese 6: A especificidade da prática educativa se define pelo caráter de uma relação que se trava entre contrários não antagônicos.

Corolário: a educação é, assim, uma relação de hegemonia alicerçada, pois, na persuasão (consenso, compreensão).

Tese 7: A especificidade da prática política se define pelo caráter de uma relação que se trava entre contrários antagônicos.

Corolário: a política é, então, uma relação de dominação alicerçada, pois, na dissuasão (dissenso, repressão).

Tese 8: As relações entre educação e política se dão na forma de autonomia relativa e dependência recíproca.

Tese 9: As sociedades de classe se caracterizam pelo primado da política, o que determina a subordinação real da educação à prática política.

Tese 10: Superada a sociedade de classes, cessa o primado da política e, em consequência, a subordinação da educação.

Obs.: Nas sociedades de classes, a subordinação real da educação reduz sua margem de autonomia, mas não a exclui. As teses 9 e 10 apontam para as variações históricas das formas de realização da tese 8.

Tese 11: A função política da educação se cumpre na medida em que ela se realiza enquanto prática especificamente pedagógica.

Obs.: A tese 11 se põe como conclusão necessária das teses anteriores que operam como suas premissas. Trata-se de um enunciado analítico, uma vez que apenas explicita o que já está contido nas premissas. Esta tese afirma a autonomia relativa da educação em face da política como condição mesma de realização de sua contribuição política. Isto é óbvio uma vez que, se a educação for dissolvida na política, já não cabe mais falar de prática pedagógica, restando apenas a prática política. Desaparecendo a educação, como falar de sua função política?

Fonte: Saviani, D. 1986. Escola e democracia, 11ª ed. SP, Cortez & Autores Associados.

24 março 2023

Vítimas da negação

Garrett Hardin

Quando Creso pensou em guerrear os persas consultou o oráculo de Delfos que respondeu com sua característica ambiguidade: “Se Creso enviar um exército contra os persas, destruirá um grande império”. Encantado com a resposta, Creso atacou e realizou-se a profecia: um grande império foi na verdade destruído, o dele.

Somos agora menos vítimas da negação, dois mil anos e meio depois? Consideremos um artigo publicado no Wall Street Journal, que expunha os perigos de uma guerra termonuclear. Mais de quatro colunas foram dedicadas a uma calorosa descrição de como nossas reservas nos tornavam capazes de destruir a União Soviética “de diversas maneiras e com sobras”. Mas, conforme salientou Jerome Frank, o artigo continha somente duas ligeiras referências ao que a URSS poderia fazer em troca. O oráculo do Wall Street Journal falou: “Se fizermos uma guerra termonuclear, uma grande nação será destruída”. Nada poderia ser mais claro!

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Nacional & Edusp.

23 março 2023

Verão


Ivana Kobilca (1861-1926). Poletje. 1889-90.

Fonte da foto: Wikipedia.

20 março 2023

Ventos observados

Rubens Leite Vianello & Adil Rainier Alves

Embora os ventos sejam simplesmente representados pelo seu vetor velocidade, em algumas regiões recebem nomes especiais. É o caso do Bora do Adriático, do Mistral do Vale do Ródano, do Foehn na Suíça e do Pampeiro na Argentina e no sul do Brasil. Exceto nos estudos do tempo e do clima local, na maioria dos casos tais ventos não merecem grande atenção meteorológica. Outros, porém, possuem especial interesse, embora sejam também localizados em regiões peculiares. Em tais circunstâncias estão as brisas de montanha e de vale, bem como as brisas marítimas e terrestres. Identicamente, os ventos anabáticos apresentam relevância. Sem a preocupação de esgotar o assunto, descrever-se-ão a seguir alguns casos de ventos locais.

Brisas de montanha e de vale

Durante as horas de incidência solar, as encostas de uma montanha e o ar em contato se aquecem mais rapidamente que o ar localizado nas camadas mais afastadas da superfície. Esse aquecimento diferencial estabelece uma circulação análoga à brisa do mar. O ar desloca-se encosta acima durante o dia e para baixo à noite [...]. Se o terreno possui configuração tal que existam vales convergentes, o ar poderá canalizar-se, resultando em brisas de vale mais fortes que as de montanha. Como no caso das brisas de mar, os ventos de montanha e de vale estão, em geral, sobrepostos ao regime geral dos ventos. Em dias de ventos calmos, os ventos de montanha e de vale podem se manifestar pela presença de nuvens do tipo cumulus, que se formam sobre as montanhas durante o dia e dissolvem-se à tarde.

Fonte: Vianello, RL & Alves, AR. 1991. Meteorologia básica e aplicações. Viçosa, UFV.

18 março 2023

Milhões, bilhões, trilhões: Quantas gotas de chuva enchem uma caixa d’água?

Felipe A P L Costa [*].

1. – ESPÉCIES, POPULAÇÕES, INDIVÍDUOS.

Ao longo dos últimos 250 anos, cerca de 1,45 milhão de espécies de seres vivos foram formalmente descritas e nomeadas [1]. Embora seja por si só impressionante, esse número não representa mais do que uma pequena parcela da diversidade global da Terra, que deve abrigar entre 5 e 50 milhões de espécies viventes de plantas, animais, fungos e micro-organismos [2].

Cada uma dessas espécies, notadamente no caso dos eucariotos [3], abarca um número variável de populações, cada qual por sua vez constituída de um número variável de indivíduos.

Para os propósitos deste artigo, vamos admitir que o planeta abrigue hoje um total de 30 milhões (= 3 × 10
7) de espécies de eucariotos (algas, protozoários, animais, plantas e fungos, sem computar bactérias, arqueias e vírus). Vamos imaginar ainda que cada uma dessas espécies abrigue uma constelação de 100 (= 102) populações, cada qual formada de 1.000 (= 103indivíduos.

Feitas as contas, teríamos então os seguintes totais:

(a) 30 milhões de espécies (i.e., 30.000.000 ou 3 × 
107);

(b) 3 bilhões de populações (i.e., 3.000.000.000 ou 3 × 
109, que vem de 3 × 107 × 102; e

(c) 3 trilhões de indivíduos (i.e., 3.000.000.000.000 ou 3 × 
1012, que vem de 3 × 109 × 103).

Em resumo, o número de espécies estaria na casa dos milhões; o de populações, na dos bilhões; e o de indivíduos, na dos trilhões.

2. – CONFUSÕES ENVOLVENDO SISTEMAS MÉTRICOS.

Muita gente (incluindo profissionais da imprensa) se atrapalha com as expressões milhões, bilhões e trilhões. O problema é grave, mas está longe de ser uma exclusividade brasileira. Nas palavras de Sagan (1998, p. 14):

“A confusão entre milhões, bilhões e trilhões ainda é endêmica na vida diária, e rara é a semana que se passa sem uma dessas trapalhadas no noticiário de TV (em geral, uma confusão entre milhões e bilhões). Assim, eu talvez possa ser desculpado por perder algum tempo distinguindo: 1 milhão é mil milhares, ou o número 1 seguido de seis zeros; 1 bilhão é mil milhões, ou o número 1 seguido de nove zeros; e 1 trilhão é mil bilhões (ou, equivalentemente, 1 milhão de milhões), que é o número 1 seguido de doze zeros.”

Além da questão de nomenclatura – usar milhões quando o certo seria bilhões, ou vice-versa –, vale ressaltar que outro tipo de problema muito comum entre nós são os erros e mal-entendidos que surgem na hora de se converter unidades de grandeza. Por exemplo, converter metros quadrados (m2) em hectares (ha) ou hectares em quilômetros quadrados (km2).

O problema, mais uma vez, não é uma exclusividade brasileira. Eis o comentário de Pimm (2007, p. 7; negritos meus):

“Na Inglaterra, quase todas as folhas caíram nos três meses do outono. Na Austrália, caíram folhas todos os meses, embora mais nos meses secos do que nos meses úmidos. Mesmo assim, as quantidades foram muito semelhantes: cerca de um quilograma de folhas secas e pequenos galhos por metro quadrado, ao longo do ano. Para muitos leitores, a frase anterior parecerá perfeitamente trivial, mas não para a minha esposa, Julia. Ela é, em suas próprias palavras, metricamente incompetente. Para ela, como para a maioria dos [estadunidenses], britânicos acima de certa idade e alguns engenheiros da NASA que enviam sondas à Marte, a frase deveria ser lida como cerca de 2 libras... por jarda quadrada.”

O autor está a se referir às dificuldades que cercam a conversão de unidades de sistemas métricos diferentes. No caso em questão, a conversão de duas unidades de massa (quilograma vs. libra) e de área (metro quadrado vs. jarda quadrada).

3. – ESCALAS MICROSCÓPICAS.

Por fim, vale a pena tecer algumas considerações a respeito de escalas microscópicas. Vejamos.

O olho humano normal consegue distinguir dois pontos separados por uma distância mínima de até um décimo de milímetro (0,1 mm ou 
10-1 mm). Chamamos a isso de poder de resolução. Como a maioria das células tem dimensões bem inferiores a 0,1 mm (= 100 µm, lê-se ‘cem micrômetros’), elas são invisíveis a olho nu.

Logo se entende por que a descoberta das células – e do mundo dos micro-organismos – ocorreu paralelamente à confecção de instrumentos (lentes, lupas, microscópios etc.) que ampliaram em muito o poder de resolução do olho humano.

O poder de resolução de um microscópio óptico, por exemplo, chega a 0,2 μm (i.e., dois décimos de micrômetro). O microscópio eletrônico, por sua vez, consegue distinguir objetos que estão separadas por até 0,5 nm (i.e., cinco décimos de nanômetro).

3.1. – Eucariotos vs. procariotos.

Vejamos agora um exemplo envolvendo seres vivos. Lembrando apenas que as unidades mais usadas para medir células e organelas celulares são o micrômetro (μm) e o nanômetro (nm).

Células ditas procarióticas (1-10 μm) são em média 10 vezes menores em diâmetro que as eucarióticas (10-100 μm), embora haja exceções [4]. Bactérias do gênero Thiomargarita, por exemplo, são gigantescas, podendo chegar aos 700 μm (ou mais) de diâmetro. Em sentido oposto, há eucariotos unicelulares diminutos. Certas algas marinhas, por exemplo, não têm mais do que 1-2 μm de diâmetro. Como regra geral, podemos dizer que micro-organismos e células do corpo de organismos multicelulares têm entre 1 e 100 μm de diâmetro.

Um micrômetro (1 μm), como já foi dito, equivale à milésima parte de um milímetro. O que significa dizer que 1 mm = 1.000 μm, de onde obtemos que 1 μm = 1 / 1.000 mm = 0,001 mm.

Um nanômetro (1 nm), por sua vez, equivale à milésima parte de um micrômetro, o que significa dizer que um nanômetro equivale à milionésima parte de um milímetro. Assim: 1 mm = 1.000 μm = 1.000.000 nm, de onde obtemos 1 nm = 0,001 μm = 0,000001 mm.

De resto, outra unidade de medida que é ainda usada no contexto de objetos menores que as organelas celulares (e.g., moléculas e átomos) é o ångström [5], sendo 1 Å = 0,1 nm. (Em palavras, 1 Å corresponde à décima milionésima parte do milímetro – i.e., para alcançarmos a escala de 1 Å teríamos de fatiar um único milímetro em 10 milhões de partes iguais.)

4. – CODA.

Para encerrar esta nossa conversa envolvendo milhões, bilhões e trilhões, eu vou deixar aqui uma provocação. Ou melhor, três. (Estou a pensar tão somente naquele leitor que é avesso a qualquer terminologia quantitativa ou, parafraseando Pimm, naquele leitor que se considera ‘matematicamente incompetente’.)

Aí vão as questões. (Responda escolhendo uma das quatro alternativas [6].)

(1) Em 1970, a população brasileira estava na casa dos 90 milhões de habitantes; em 2022, a julgar pelo censo ainda em curso, chegou aos 210 milhões (talvez um pouco mais). Assim, transcorridos 52 anos, o crescimento da população brasileira foi da ordem de:

(a) 1,2 × 102 indivíduos;
(b) 1,2 × 105 indivíduos;
(c) 1,2 × 108 indivíduos; ou
(d) 1,2 × 1011 indivíduos.

(2) Em 2022, a população humana na Terra chegou aos 8 bilhões de indivíduos. O que equivaleria a

(a) 8 × 103 indivíduos;
(b) 8 × 106 indivíduos;
(c) 8 × 109 indivíduos; ou
(d) 8 × 1012 indivíduos.

(3) Para encher uma caixa d’água de 1.000 litros são necessárias 1 × 
109 gotas de chuva, cada uma delas com 1 mm3 de volume. Significa dizer que são necessárias:

(a) 1 milhão de gotas;
(b) 10 milhões de gotas;
(c) 1 bilhão de gotas; ou
(d) 10 bilhões de gotas.

*

NOTAS.

[*] Versão anterior deste artigo (envolvendo então apenas os itens 1 e 2) foi publicada na edição 356 (22/11/2005) do Observatório da Imprensa. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Uma sugestão e um comentário. A sugestão: Para uma introdução ao estudo da classificação biológica, ver Costa et al. (2011). O comentário: Para indicarmos uma quantidade exata de seres ou objetos, ou para indicarmos a posição de cada um deles em uma série, usamos uma classe especial de palavras: os numerais. Não permita que os robôs (muitos deles semianalfabetos) que estão por trás de certos corretores automáticos (e.g., o do Word), induza você a propagar erros. Alguns numerais (mas não todos) variam em gênero ou número. Entre estes últimos (milhão, bilhão etc.), porém, a palavra só vai para o plural quando a quantidade em questão é igual ou superior a 2. Sobre o uso correto dos numerais, ver, e.g., Cunha (1976).

[2] Para ter uma ideia dos problemas envolvidos com a produção de estimativas para o tamanho da biodiversidade global, ver Mora et al. (2011) e Larsen et al. (2017); em port., Erwin (1997).

[3] Quando falamos em eucariotos estamos a nos referir a um conjunto bastante heterogêneo de seres vivos, incluindo algas, protozoários, animais, plantas e fungos. O que os une é tão somente o fato de que as células do corpo deles são nucleadas. Ficam de fora os procariotos (bactérias e arqueias) e os vírus. Para um mapa ilustrado e razoavelmente detalhado de todos esses grupos, ver, e.g., Margulis & Schwartz (2001).

[4] 10 vezes menor em diâmetro implica em 1.000 (= 103) vezes menor em volume, lembrando que o volume de qualquer célula é uma função cúbica de suas dimensões lineares.

[5] O termo alude ao físico sueco Anders Jonas Ångström (1814-1874).

[6] Estou disponibilizando em outro lugar (ver aqui) uma pequena lista (em formato PDF) com comentários e respostas para estas e algumas outras questões afins.

*

REFERÊNCIAS CITADAS.

+ COSTA, FAPL & mais 2. 2011. Classificação biológica: desafios na história da Biologia. In: Paleari, LM & mais 3, orgs. Experimentando ciência: Teoria e prática para o ensino da Biologia. SP, Cultura Acadêmica & Unesp.
+ CUNHA, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª ed. BH, Bernardo Álvares.
+ ERWIN, TL. 1997 [1988]. A copa da floresta tropical: O coração da diversidade biótica. In: EO Wilson, ed. Biodiversidade. RJ, Nova Fronteira.
+ LARSEN, BB & mais 3. 2017. Inordinate fondness multiplied and redistributed: The number of species on Earth and the new pie of life. Quarterly Review of Biology 92: 229-65.
+ MARGULIS, L & SCHWARTZ, KV. 2001 [1997]. Cinco reinos, 3ª ed. RJ, Guanabara Koogan.
+ MORA, C & mais 4. 2011. How many species are there on Earth and in the ocean? PLoS Biology 9:e1001127.

* * *

15 março 2023

O olhar para trás

Vinicius de Moraes

Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.

Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.

Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez... mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.

Alguém gritaria longe: – “Quantas rosas nos deu a primavera!...”
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o voo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.

Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! – a sua voz é fresca como o orvalho...
Beijam-me a face – irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?

Voltaria o silêncio – seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa – Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?

E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...

No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.

É que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.

Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria – Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que me chagaste a mim cheio de chagas?

Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria – Por que vieste te dar ao já vendido?

Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!

Fora, um riso de criança – longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.

Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.

Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...

E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...

Fonte (estrofe 7): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª ed. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1935.

13 março 2023

Bebedores de absinto


Jean-François Raffaëlli (1850-1924). Les buveurs d’absinthe [ou Les déclassés]. 1880-1.

Fonte da foto: Wikipedia.

16 anos e cinco meses no ar

F. Ponce de León

Ontem, 12/3, o Poesia Contra a Guerra completou 16 anos e cinco meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘16 anos e quatro meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Friedrich Albert Lange, Herbert Guthrie-Smith, Michelle Klautau, Sue Savage-Rumbaugh e William B. Kemp. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Ludovic-Napoléon Lepic e Nadir Afonso.

11 março 2023

El cazador y el ecosistema ártico

William B. Kemp

¿Tienen futuro las sociedades de cazadores? En el caso de los esquimales, la respuesta puede ser un si condicionado. La presión universal permite asegurar que los recursos del Artico serán explotados de forma contínua, y los esquimales podrían aprovecharse de ello. Ya es posible distinguir tres grupos distintos emergiendo de la cultura esquimal. Uno de llos son los trabajadores asalariados en las comunidades de mayor tamaño. Otro, que está empezando a aparecer, es un grupo orientado hacia el exterior que parece destinado a regular y controlar los ingresos procedentes del mundo exterior: el flujo de energía y materiales no esquimales que, como hemos visto, tienen una importancia enorme en las vidas de los cazadores.

Finalmente, hay un tercer grupo, pequeño en número, pero distribuido por un territorio muy amplio, consistente en cazadores que continúan participando de la forma tradicional en el frágil y remoto ecosistema ártico. Los cazadores y los asalariados se relacionarán entre si mediante intercambios de materiales y, probablemente, de personas. Los que escogieron vivir de lo que les da la tierra pueden parecer el más tradicional de los tres grupos, pero sus vidas serán bastante dinámicas debido a que las vaiables que determinan este modo de vida cambian constantemente. Si se llega a la conclusión de que un trineo automóvil es más útil que uno tirado por perros, entonces la posesión de un automóvil se convertirá en uno de los criterios que definan al tradicional cazador esquimal. Con los esquimales orientados hacia el exterior, garantizando la estabilidad de los tres grupos del sistema, las comunidades del Norte podrán evolucionar sin sufrir efectos desastrosos. Pero la relación fundamental entre el cazador y el ecosistema ártico seguirá siendo la misma.

Fonte: Kemp, W. B. 1975. In: Scientific American. Biología y cultura. Madri, H Blume. Excerto de artigo publicado originalmente em 1971.

09 março 2023

Ecologia sensorial e a mente humana


Felipe A. P. L. Costa [*].

1. – HÁ UM MUNDO REAL LÁ FORA?

Sim, há um mundo real lá fora.

Tratar o mundo exterior como uma entidade real e objetiva, não como uma alucinação ou um sonho, é um ponto de vista não só prudente, mas também saudável. Além de oferecer suporte ao trabalho de estudiosos que seguem na luta para desvendar e entender o que se passa à nossa volta, tal ponto de vista já é adotado por muita gente. Trata-se, portanto, de um bom princípio norteador, seja no plano institucional, seja no plano psicológico.

Antes de prosseguir, cabe aqui explicitar o significado que adoto para certos termos. O uso do rótulo objetivo, por exemplo, emana do fato de que a existência do mundo (e dos inúmeros elementos que o habitam) (1) independe da vontade individual de qualquer um de nós; e (2) pode (e deve) ser atestada por terceiros (leia-se: outros observadores).

Sim. A veracidade da afirmativa “Há um mundo real lá fora” é, em última instância, fruto de um veredicto. O que significa dizer que as afirmativas científicas a respeito do mundo devem ser atestadas (sendo então mantidas ou refutadas) por mais de um observador. O que não significa dizer que o que não pode ser atestado não existe ou não tem qualquer chance de existir. Ocorre apenas que a ciência não tem muito a dizer sobre tais entidades, ao menos a ciência atual.

Além de um mundo real e objetivo lá fora, há ainda um mundo subjetivo dentro de cada um de nós... Sim, podemos – e devemos – presumir que haja um mundo interior dentro de cada cérebro humano. (Assim como há um mundo interior dentro do cérebro de muitos outros animais; assunto a respeito do qual, no entanto, nós não iremos nos estender aqui.)

O mundo interior é o mundo das ideias. Em relação às quais, aliás, já não caberia mais aplicar o rótulo objetivo. Não é difícil entender o motivo: Ao contrário do mundo das coisas, o mundo das ideias não está acessível ao exame direto por parte de observadores externos.

Compreensivelmente, portanto, o mundo subjetivo é algo bem mais fugidio e enganoso. Um mundo a respeito do qual proliferam inúmeras incertezas, além de mitos e mal-entendidos. Os próprios cientistas que lidam com o assunto estão habituados a caminhar entre dúvidas e inconsistências. Muitas das quais, é bom que se diga, são bastante intrigantes.

Considere a seguinte questão: Se a existência de um mundo interior não pode ser atestada por via direta, como posso me assegurar de que os demais seres humanos são igualmente dotados de mentes pensantes? (Tenho como premissa que eu mesmo sou dotado de uma.)

Como anotou Dennett (1997, p. 9):

“[S]erá que temos certeza de que todos os seres humanos possuem mentes? Talvez (considerando o caso mais extremado de todos) você seja a única mente no universo; talvez todas as outras coisas, inclusive o autor aparente deste livro, sejam simples máquinas destituídas de mente. Esta estranha ideia me ocorreu pela primeira vez quando era muito criança, e talvez tenha ocorrido a você também.”

Em resumo, ideias são entidades imateriais, ditas também subjetivas. Elas povoam um mundo cuja existência, natureza e dinâmica só podem ser investigadas de modo indireto.

1.1. – O mundo como representação.

Há uma correspondência entre o mundo das coisas e o mundo das ideias, ainda que não seja uma correspondência de todo simétrica. Há ao menos dois motivos para justificar a assimetria. Primeiro, porque muitos objetos do mundo exterior não estão representados em nossas mentes. Segundo, porque muitas das representações que trazemos conosco são incompletas, imperfeitas ou mesmo distorcidas. Examinemos o assunto um pouco mais de perto.

O nosso mundo – i.e., o mundo em que cada um de nós vive – é em boa medida uma representação, um mapa construído no interior de nossos cérebros. Ocorre que, além de não ser fidedigna, tal representação não é fixa nem imutável – podemos mudar de ideia a respeito de certas coisas.

Não custa repetir: O mapa do mundo que trazemos conosco tem a sua estabilidade, mas não se trata de um mapa definitivo ou imutável. Na verdade, o nosso mapa mental experimenta frequentes ajustes diários, podendo até ser redesenhado – talvez até inteiramente redesenhado, como é anseio e propósito de certas organizações que manipulam a plasticidade mental do ser humano (e.g., seitas religiosas oportunistas, como as chamadas igrejas neopentecostais, e o serviço secreto de alguns países, como a CIA, dos Estados Unidos, e o Mossad, de Israel).

Parte dessa dinâmica mental se deve ao fato de que o cérebro está a receber sinais vindos do exterior o tempo todo. Tal bombardeio, por sua vez, é fruto de uma realidade aparentemente inescapável: A nossa vida é uma experiência contextualizada. Podemos evitar a convivência com outros seres humanos, mas sempre haverá um contexto – afinal, nenhum ser humano é autossuficiente, nenhum ser humano consegue viver em um vácuo ecológico.

Em meio a um incessante e aparentemente caótico bombardeio, os nossos órgãos dos sentidos estão encarregados de selecionar apenas e tão somente alguns sinais de interesse.

1.2. – Órgãos dos sentidos como filtros seletivos.

A mediação entre o cérebro e o mundo exterior é feita por meio de superfícies ou estruturas especializadas – os órgãos dos sentidos [1]. Essas estruturas sensoriais capturam, filtram e encaminham os sinais recebidos (estímulos). O processo todo meio que organiza o caos – i.e., dá algum significado aos padrões de sinais que são percebidos, convertendo-os em informação útil.

O conjunto de processos biológicos envolvidos na aquisição, retenção e uso de informações é chamado de cognição. Entre os animais, a cognição determina os padrões de comportamento (e.g., modo de forrageio, escolha de parceiros e escape de predadores). Muitos desses padrões, claro, têm implicações óbvias e diretas na vida dos organismos. É assim que “contra um fundo contínuo de odores em uma pradaria, um animal responderá a um odor inesperado, talvez o de um predador” [2].

O estudo da cognição é um campo complexo, multidisciplinar e ainda em franca ebulição. E que também tem as suas lacunas. Assim, embora o uso da informação (entendida aqui como uma tomada de decisão) seja algo relativamente bem estudado, outras variáveis têm sido menos exploradas. É o caso do estudo das implicações evolutivas de características como percepção, aprendizagem, memória e atenção [3],

Em circunstâncias normais, a seletividade sensorial deve gerar respostas apropriadas. É assim que “a energia de apenas uma molécula de determinadas substâncias é suficiente para eliciar disparos no nervo de um quimiorreceptor” [4].

Diferentemente do que imaginam alguns, os órgãos dos sentidos (olhos, ouvidos etc.) não são janelas escancaradas – i.e., nós não somos capazes de perceber tudo o que de fato ocorre em torno de nós. Nem os órgãos dos sentidos são filtros perfeitos ou sequer fidedignos. São tendenciosos, visto que são seletivos. A nossa experiência sensorial, portanto, não nos dá um retrato do mundo. O que ela nos dá, na melhor das hipóteses, é tão somente um palpite, um esboço inacabado.

O comentário acima bem pode ser convertido em uma advertência: Todo e qualquer tipo de conhecimento que esteja assentado tão somente em impressões sensoriais tende a induzir o observador a erros e mal-entendidos. Razão pela qual o mapa do mundo que trazemos conosco deve ser tratado com desconfiança.

2. – CODA.

Se o mapa do mundo que trazemos conosco não é um retrato fiel, mas sim um esboço enviesado, então a noção subjetiva que elaboramos a respeito das coisas que nos cercam deve ser, ela própria, parcial e incompleta. Uma adesão irrestrita e irrefletida às nossas impressões sensoriais seria, portanto, uma atitude ingênua e equivocada, além de potencialmente desastrosa [5].

*

NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em desenvolvimento). Há uma campanha de comercialização envolvendo os quatro livros anteriores do autor; para detalhes, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] Tais órgãos atuam como transdutores, convertendo certos tipos de energia externa (química, sonora etc.) em sinais elétricos internos. O ser humano, conforme anotou Silveira (2008, p. 181), “[P]ossui cinco sentidos especiais – visão, olfação, gustação, audição e equilíbrio –, além de um sentido geral, a somestesia. Esta última apresenta duas facetas muito distintas. Uma delas está voltada para o meio ambiente e o controle da postura e dos movimentos. Outra, homeostática, é voltada para a representação da noção subjetiva do próprio eu e do seu estado fisiológico, assim como do controle das funções orgânicas”.

[2] Citação extraída de Messenger (1980, p. 13).

[3] Em poucas palavras: percepção (= tradução de sinais do exterior em representação neuronal), aprendizagem (= aquisição de representação neuronal para informação nova), memória de longo e curto prazo (= representação passiva ou ativa de informação já adquirida) e atenção (= representação neuronal ativada em determinado momento) – para detalhes, discussão e referências, v. Dukas (2004); em port., Lent (2008).

[4] Citação extraída de Messenger (1980, p. 13).

[5] Esta noção crítica é ela própria fruto da moderna ciência experimental. Para comentários e referências a respeito de um estudo clássico sobre “o que o olho da rã conta ao cérebro da rã”, ver Messenger (1980, p. 51-2); para uma introdução à fisiologia e à ecologia sensorial, ver Lent (2008) e Dangles et al. (2009).

*

REFERÊNCIAS.

+ Dangles, P & mais 3. 2009. Variability in sensory ecology: expanding the bridge between physiology and evolutionary biology. Quarterly Review of Biology 84: 51-74.
+ Dennett, DC. 1997 [1996]. Tipos de mentes. RJ, Rocco.
+ Dukas, R. 2004. Evolutionary biology of animal cognition. Annual Review of Ecology, Evolution and Systematics 35: 347-74.
+ Lent, R, org. 2008. Neurociência da mente e do comportamento. RJ, G Koogan.
+ Messenger, JB. 1980 [1979]. Nervos, cérebros e comportamento. SP, EPU & Edusp.
+ Silveira, L. C. L. 2008. Os sentidos e a percepção. In: Lent (2008).

* * *

08 março 2023

Mentes semelhantes à minha

Sue Savage-Rumbaugh

Os antropoides que conheço se comportam em todos os momentos como se possuíssem mentes muitos semelhantes à minha. Eles podem não pensar em tantas coisas, ou tão profundamente como eu penso, e podem não fazer planos antecipados como eu faço. Os antropoides constroem ferramentas e coordenam suas ações durante a caça, como de macacos, por exemplo. Mas nenhum antropoide jamais foi visto planejando com suficiente antecedência para combinar as habilidades da construção de ferramentas e da caça para um propósito comum. Tais atividades foram um fator crítico nas vidas dos primeiros hominídeos. Essas habilidades maiores que eu possuo como ser humano são a razão pela qual sou capaz de construir o meu próprio abrigo, ganhar meu próprio sustento e seguir leis escritas. Elas permitem que eu me comporte como uma pessoa civilizada, mas não significam que eu penso enquanto os antropoides simplesmente reagem.

Fonte: Calvin, W. H. 1998. Como o cérebro pensa. RJ, Rocco.

06 março 2023

A má preguiça venceu de novo: Ministério da Saúde suspende a divulgação diária das estatísticas

Felipe A. P. L. Costa [*].

Em memória de Sueli [Correa] Costa (1943-2023).

A inércia é uma poderosa ‘força universal’ [1]. Mas é também um destino. Veja: A julgar pelo que nos contam certos modelos cosmológicos, o zero absoluto, a desagregação das partículas e – acrescentaria eu – a indiferença infinita seriam o destino último do mundo. No âmbito do comportamento individual e da cultura humana, a inércia muitas vezes se manifesta como preguiça (individual) ou como imobilismo (coletivo).

1. DOIS TIPOS DE PREGUIÇA.

Não é difícil identificar as múltiplas manifestações da inércia no âmbito dos negócios humanos. Algumas delas são bastante folclóricas, como a famosa frase que os candidatos costumam ouvir ao final de uma entrevista de emprego: “Não nos procure, nós o procuraremos”.

Muitas outras, no entanto, são profundamente perniciosas, sobretudo em contextos coercitivos – “É melhor você não contar nada disso para a sua mãe”, diz o tio molestador para a sobrinha.

Por vários motivos (a respeito dos quais nós não vamos nos estender aqui), a preguiça não costuma ser bem-vista pela maioria da população. Não estranha, portanto, que esse tipo de conduta não seja incentivado publicamente, embora seja o sonho privado de quase todos os integrantes das elites dirigentes (econômicas, políticas etc.) de qualquer país do mundo.

O correto seria a gente separar o joio do trigo, digo a má e a boa preguiça [2], e centrar fogo apenas e tão somente na nocividade da primeira.

2. A MÁ PREGUIÇA SEGUE A GOVERNAR O PAÍS?

Todo este preâmbulo, ou todo este nariz de cera, como dizem os jornalistas, foi apenas para registrar o seguinte: A má preguiça – a mesma que imperou como nunca no país ao longo dos últimos quatro anos, tanto no governo como na imprensa – segue dando as cartas em muitos setores da sociedade brasileira.

Na última sexta-feira (3/3), por exemplo, cumprindo o que havia anunciado semanas antes, o Ministério da Saúde suspendeu a divulgação diária das estatísticas envolvendo a pandemia em terras brasileiras.

A justificativa oficial é revoltante: O ministério alega que apenas nove estados seguem a divulgar estatísticas diárias, o que tornaria a divulgação dos números um retrato bastante nebuloso (palavras minhas) da situação do país. (Que não haja dúvida: Tem governo estadual fazendo corpo mole há muito tempo, incluindo MG, DF e RJ, como eu ressaltei em inúmeros boletins anteriores.)

Cada um de nós – sejamos ou não jornalistas, sejamos ou não assessores de imprensa – tende a se contentar com as próprias mentiras que inventa. Pois para mim, a atitude do ministério é preocupante – para não dizer profundamente vergonhosa.

3. UM RECADO PARA OS LEITORES.

De resto, deixo aqui registrado o meu pedido de desculpa aos raros leitores – incluindo amigos e colegas de longa data, vizinhos de rua e, claro, gente desconhecida – que ainda acompanham os boletins semanais que sigo a publicar neste Jornal GGN, desde 2/4/2020 (o primeiro está aqui e o da semana passada, aqui).

O mais importante, claro, não é prosseguir por prosseguir com o monitoramento. O propósito final é zerar de vez as estatísticas [3]. Mas zerar de verdade.

A medida preguiçosa adotada agora pelo Ministério da Saúde – e que bem poderia ter sido adotada por qualquer um dos fulanos que antecederam a ministra atual –, não irá acelerar a resolução do problema. Seguramente, porém, terá um efeito nocivo, pois prejudica o monitoramento.

4. CODA.

Enquanto isso, nós, o povo, devemos ter em mente dois princípios: Máscaras e vacinas seguem sendo as melhores armas que nós temos para (i) manter as estatísticas em declínio; e (ii) impedir o surgimento de novidades evolutivas que venham a promover uma nova e repentina escalada dos números. (Lembrando que a vacina combate a doença, mas não impede o contágio. O que pode impedir o contágio é o uso correto de máscara facial.)

*

NOTAS.

[*] Há uma campanha de comercialização envolvendo os livros do autor – ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para mais informações ou para adquirir (por via postal) os quatro volumes (ou algum volume específico), faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Para uma definição formal e rigorosa de inércia, ver, e.g., Nussenzveig (2013).

[2] Sim, há uma boa preguiça, mas a esta nós comumente aplicamos o rótulo de ócio (leia-se: a livre escolha de atividades e de emprego do tempo, em oposição ao cumprimento de ocupações obrigatórias). A ciência moderna, por exemplo, é fruto do ócio criativo. Veja: Historicamente, o desenvolvimento do pensamento especulativo organizado (= ciência) teve de esperar pela abundância alimentar e, mais adiante, pelo surgimento do ócio criativo, notadamente entre integrantes de uma parcela privilegiada da população. Nas palavras de Davis (1968, p. 67; tradução livre):

“Durante muito tempo, o homem médio não dedicou mais do que uma parte bem pequena do seu tempo ou de sua reflexão à cultura e a ocupações de ócio. Estas foram promovidas por uma parcela bem pequena da humanidade, a que estava no topo da escala social, alcançado graças a proezas físicas, por arte, destreza, por habilidade ou por perseverança; havia nela um pequeno grupo composto de artistas, de músicos e de letrados que constituíam os círculos intelectuais que gravitavam em torno da elite nascida do poder. Se houve exceções a este quadro, foi, talvez, em algumas ilhas tropicais, onde as condições de vida permitiram conceber este sonho paradisíaco: pouco trabalho e muita diversão.”

[3] Reitero aqui o que escrevi em artigo anterior (aqui):

“As estatísticas da pandemia de fato seguem a cair em escala planetária, mas ainda é cedo para empurrar tudo para a gaveta do esquecimento ou para debaixo do tapete. Como uma indicação algo arbitrária para uma linha de corte, eu sugeriria o seguinte: As estatísticas devem continuar a ser divulgadas todos os dias – incluindo fins de semana, feriados etc. – até que a média semanal no número diário de mortes por Covid-19 em todo o país fique abaixo do número equivalente de mortes provocadas por outras doenças contagiosas afins (e.g., gripe). Ou até que essa média fique abaixo de 10. O número que for mais baixo.”

*

REFERÊNCIAS CITADAS.

Davis, DM. 1968 [1967]. ¿Epoca comunitaria o era del individualismo? In: Vários, La civilización del ocio. Madri, Guadarrama.

Nussenzveig, HM. 2013. Curso de física básica, v. 1: Mecânica, 5ª ed. SP, Blucher.

* * *

05 março 2023

O barco quebrado


Ludovic-Napoléon Lepic (1839-1889). Le bateau cassé. 1877.

Fonte da foto: Wikipedia.

03 março 2023

Tutira

Herbert Guthrie-Smith

Uma região campestre não pode ser restaurada; as vicissitudes de seus pioneiros não podem ser reproduzidas; a invasão por plantas, animais e aves alienígenas não pode ser repetida; a sua antiga vegetação não pode ser ressuscitada – as palavras terra incognita foram abolidas do mapa da pequena Nova Zelândia.

Fonte: Crosby, A. W. 1993. Imperialismo ecológico. SP, Companhia das Letras. Excerto de livro originalmente publicado em 1921.

01 março 2023

Recorde

Gil de Carvalho

À mesa dos cafés, a carne.
Quase nua, palpita dentro
De pequenos cronómetros.
Recorda, dia a noite, que
Afinal os obstáculos perduram
Sempre no interior da chama.
Que o Eterno vacila sobre a cama
Destes animais litúrgicos, votados
Que somos – ao amor, à morte, ao abandono.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1998.

eXTReMe Tracker