28 setembro 2023

Estamos a erguer um país ou tão somente um grande acampamento extrativista?

F. Ponce de León.

1.

Se o governo atual está aquém das nossas melhores expectativas – e acho que há bons motivos para dizer que sim (veja, por exemplo, os lobistas que continuam a saltitar pelos corredores do MEC) –, os dois governos anteriores foram o suprassumo da anarquia, da pilhagem e, claro, da corrupção. Para fins de registro, citaria aqui dois exemplos que julgo emblemáticos.

2.

Primeiro. Uma das primeiras iniciativas legislativas durante o governo Temer foi uma proposta de lei (apresentada, claro, por um parlamentar golpista) que, se bem me lembro, facultava aos plantadores de cana e afins a prerrogativa de remunerar os seus ‘colaboradores’ com itens como alimentação e abrigo. Seria uma espécie de supressão do salário. Mas não em razão do advento de algum modelo mais eficiente de controle social sobre o uso da terra. Não, era um retrocesso. Estaríamos a trocar uma instituição capitalista por uma relação do tipo feudal. Uma aberração. (Patrocinada, entre outros, pelo nosso querido agronegócio exportador.)

3.

Segundo exemplo. Já durante o governo do inominável, citaria a criminosa proposta daquele ex-ministro anseriforme. Estou a me referir à proposta que, entre outras coisas, visava atenuar as barbeiragens comumente associadas às ações policiais mais violentas. O projeto autorizava o bangue-bangue: todas ou quase todas as mortes de civis ocorridas em operações policiais seriam desculpáveis. Não era só uma afronta à população civil, era também uma afronta aos próprios policiais. O estado continuaria a não oferecer treinamento e condições dignas de trabalho, mas saía pela tangente, eximindo-se de culpa ou responsabilidade: “Virem-se. Defendam-se. Se for o caso, matem os suspeitos. Ninguém será punido.”

4.

O policial que trabalha nas ruas talvez possa ser descrito como um ‘operário da lei com uma arma na cintura’. Trata-se de um profissional mal pago e, sobretudo, muito mal treinado. Um peão colocado nas ruas meio que de qualquer jeito. No início da carreira, o sujeito pode até trazer consigo algum idealismo juvenil. Após alguns meses na academia de polícia, muitos desses jovens devem sair de lá trazendo agora consigo também uma sensação de insegurança. E de medo. Muito medo. Todavia, após ter participado de uma ou duas operações violentas, o jovem policial dificilmente manterá consigo algum traço de idealismo. E aí, batizado, poderá desenvolver laços de afetividade e, sobretudo, de reconhecimento mútuo com os colegas veteranos. (O remorso que alguns policiais sentem pelos crimes cometidos em serviço tem sido explorado por seitas religiosas oportunistas. Ainda assim, no entanto, a taxa de suicídio entre os policiais segue anormalmente elevada.) Como em outras corporações, cria-se um forte espírito de corpo – o risco de morte e a exposição constante à chantagem tendem a fortalecer os elos entre eles. É urgente sanitizar as polícias militares. O mais importante, porém, é valorizar a carreira e, sobretudo, melhorar o treinamento e oferecer condições dignas de trabalho.

5.

A rigor, desconheço uma única atividade profissional que não careça de sanitização e de melhorias urgentes e radicais. Um exemplo com o qual convivo há mais de quatro décadas é o magistério. É embaraçoso ver, por exemplo, quantos professores universitários (aposentados ou em atividade) não reúnem (ou não reuniam) as mínimas condições para exercer a atividade. E o pior: não são poucos os docentes que odeiam (ou odiavam) a docência e o estudo. (Ao contrário do que alguns ideólogos da direita gostam de alardear, além de tecnicamente fraco, a maior parcela do magistério universitário sempre foi dominada por gente politicamente alienada e de direita.)

6.

No fim das contas, os problemas sociais do país talvez possam ser dispostos em duas prateleiras, a dos problemas estruturais e a dos problemas conjunturais. Na hipótese de que consiga repetir as duas experiências anteriores, o governo Lula 3 talvez consiga nos livrar de alguns dos problemas conjunturais mais graves e urgentes. Incluindo problemas que são profundamente vexatórios para o país e, claro, para qualquer indivíduo minimamente decente, como a fome e a miséria. (Veja, por exemplo, o que aconteceu com a população de rua nas grandes cidades após o golpe contra a Dilma.) Digo que a fome e a miséria são vexatórios porque são problemas relativamente fáceis e baratos de resolver.

7.

Em compensação, será muito difícil para o governo – a julgar pela composição da frente ampla que lhe dá sustentação e, sobretudo, pela desorganização das forças populares – lidar com problemas que nos assombram desde sempre e que têm a ver com os fundamentos históricos da nossa economia, notadamente o extrativismo (mineral e vegetal). Assim é que medidas adotadas há quase dois séculos pelo capitalismo estadunidense, como a reforma agrária, ainda continuam no papel por aqui. E veja ainda o caso da Petrobras: continua preocupada apenas e tão somente em emporcalhar a atmosfera e em distribuir dividendos para os seus acionistas.

8.

É difícil construir uma sociedade civilizada quando a base econômica disponível é o extrativismo. Somos extrativistas há mais de 500 anos e eu temo que, por muito tempo ainda, nós vamos continuar convivendo com os problemas daí advindos. Problemas do tipo: (i) No meio patronal, seguirá reinando a malandragem (sonegação e evasão fiscal, grilagem de terras etc.); (ii) Nos setores médios da sociedade, seguirá reinando o cinismo (exibicionismo, ignorância diplomada, etc.); e (iii) Nos setores mais explorados, seguirá reinando o desespero (fanatismo religioso, prostituição etc.).

9.

Gostaria de estar equivocado, por ora, no entanto, continuo a defender a tese de que não estamos a erguer um país, mas apenas e tão somente um grande acampamento extrativista.

* * *

26 setembro 2023

Mal secreto

Raimundo Correia

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Fonte (estrofes 2 e 4): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1883.

24 setembro 2023

A cidade como meio ambiente

Kevin Lynch

Imagine que o crescimento da população e a evolução da tecnologia tenham urbanizado todo o globo terrestre – que uma única cidade cubra toda a superfície utilizável da Terra. A perspectiva é um pesadelo. Instantaneamente a pessoa tem a impressão de estar emaranhada em uma fila interminável de casas, fadada à presença contínua e à pressão de outras pessoas. A cidade seria monótona, impessoal e desconcertante. Seria abstrata, sem contato com a natureza; mesmo as coisas produzidas pelo homem não poderiam ser transformadas. O ar seria pesado, a água escura, as ruas por demais concorridas e perigosas. Anúncios e alto-falantes estariam focalizados em todos os transeuntes. Poder-se-ia talvez conseguir intimidade em casa, mas como se poderia plantar, caçar ou explorar? Onde poderia alguém encontrar uma mata virgem ou iniciar uma revolução? Existiria alguma coisa que pudesse desafiar ou excitar o espírito humano? Não seria esse mundo, inteiramente feito pelo homem, terrivelmente estranho ao próprio homem? Seria com certeza um lugar vulnerável: qualquer variação das condições o devastaria completamente.

Fonte: Lynch, K. 1977 [1967]. In: Vários. Cidades: A urbanização da humanidade. RJ, Zahar.

23 setembro 2023

Determinismo ecológico

John Vandermeer

Todo empezó con una simple idea. Hache mucho tiempo que alguien se dio cuenta de que era posible robar porciones de la productividad del prójimo. Esta pequeña innovación tuvo sobre el desarrollo de la cultura humana una influencia quizás mayor que la de la palanca, la rueda, la máquina de vapor o cualquier otro avance tecnológico. Con la ejecución de esta idea cambiaron las relaciones fundamentales entre los seres humanos y entre estos y la Naturaleza; el cambio generó un proceso evolutivo que parece estar hoy llegando a su culminación.

Sí, estamos en una situación crítica. Las soluciones fascistas son erróneas, tanto desde el punto de vista humanístico como del ecológico. Las soluciones liberales no pueden alcanzarce en nuestro sistema socioeconómico actual. Está claro que la solución de los problemas del medio ambiente requiere de uno tipo de política radicalmente diferente.

Fonte: Vandermeer, J. 1982 [1977]. In: SESPA, ed., La biología como arma social. Madri, Alhambra.

20 setembro 2023

Todo brasileiro é otário?

F. Ponce de León

1.

Após um lapso de seis anos, eis que a Assembleia Geral da ONU tornou a ser aberta por um presidente brasileiro. (Como o leitor talvez já saiba, entre 2016 e 2022, o país esteve desprovido de presidente.)

2.

O discurso de abertura foi hoje (19/9). O discurso foi bem escrito e foi bem lido (ver aqui).

3.

Chamou a atenção o comportamento de um dos presentes, um moleque mimado e mal-educado: o presidente da Ucrânia.

4.

Aliás, o presidente brasileiro tem encontro marcado para amanhã (20/9) com esse criminoso de guerra (ver aqui). Deveria presentear o presidente da Ucrânia com uma enxada. O sujeito poderia se inspirar e, quem sabe, poderia começar a trabalhar a favor do bem-estar da população ucraniana.

5.

Ainda sobre o discurso, arrisco dizer que a grande imprensa brasileira – essa ficção nossa de todos os dias – irá distorcer ou irá relativizar o trecho em que o presidente fez uma defesa explícita da tão badalada liberdade de imprensa.

6.

No referido trecho, o presidente evocou a situação dramática do ativista e jornalista australiano Julian Assange, preso político que hoje está encarcerado em Londres (ver aqui). (Como o leitor talvez já saiba, o governo dos Estados Unidos reivindica a extradição do australiano. Quer ele próprio humilhá-lo, torturá-lo e matá-lo.)

7.

O ‘crime’ de Assange? Divulgar informes, sem filtros e sem distorções, envolvendo crimes praticados por agências do governo estadunidense. Coisa que nenhuma mídia brasileira jamais foi capaz de fazer.

8.

Por falar em mentiras e distorções, veja o caso do grupo Globo (jornal, rádio, TV etc.). (Muitos leitores talvez não saibam, mas a TV Globo foi durante muito tempo um verdadeiro antro de criminosos do mais baixo nível. Comparável talvez à CBF ou ao PL. Na segunda metade dos anos 1980, por exemplo, um dos melhores jornalistas da casa me confidenciou que, caso fosse proibido o consumo de cocaína dentro da sede da emissora, o tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro iria à falência...)

9.

Sem abandonar aqui a pauta do consumo de drogas, cabe registrar que, a bem da verdade, o departamento de jornalismo da TV Globo jamais foi seriamente ameaçado por um departamento equivalente de alguma rede concorrente. É a tal história: a TV Globo é ruim, muito ruim, mas as concorrentes são ainda piores. (É vergonhoso ver, por exemplo, como a Record copia até mesmo as legendas já usadas ou ainda em uso pela Globo.)

10.

De resto, qual seria a maldição que impede que a Globo tenha correspondentes internacionais que saibam ler e escrever? Como é possível, por exemplo, que o escritório da emissora em NY seja habitado por profissionais tão ruins e tão fracos? Não sei bem a resposta, mas arriscaria dizer (e isso vale para todos os veículos) que a editoria de Esportes (leia-se: futebol) é a única que parece estar preocupada em contratar profissionais minimamente alfabetizados.

11.

Politica, Economia e Internacional, por exemplo, estão nas mãos de gente que demonstra ter o nível de raciocínio de um pé de maconha ou de gente que demonstra ter a integridade de uma bolha de sabão. Veja o caso daquele ‘comentarista político’ da Globo News, um conterrâneo meu que era viciado em apostas e ia à praia usando sunga de crochê. Ou considere o caso de um vizinho dele, aquele colunista do jornal O Globo que foi alçado à condição de presidente da ABL. (Como o leitor talvez já tenha percebido, a ABL é uma das edículas da TV Globo.)

12.

Não bastasse toda a miséria literária que essa gente promove, dia após dia, inundando o mercado brasileiro com garranchos tortuosos e mal pensados, sejam os garranchos frutos do trabalho deles ou de terceiros, essa turma vive a mentir, a omitir e a distorcer. Como é possível que essas falcatruas perdurem por tanto tempo? Assim de pronto, devo confessar que só uma resposta me vem à cabeça: Nós, brasileiros, somos todos uns otários.

* * *

19 setembro 2023

Fim de romance


Antônio [Diogo da Silva] Parreiras (1860-1937). Fim de romance. 1912.

Fonte da foto: Wikipedia.

16 setembro 2023

Courage

Heinz Maier-Leibnitz

I want to come back to this question: courage. It is my feeling that we must have courage to be aware that we know very little of what we do. A scientist nearly always does things which he does not understand and quite often he must even be aware that there are others who would understand if they were in his place. I would say that a great incentive is doing new things is the desire to learn rather than what has been called rebellion just now. [Jacques] Monod commented that assumption came first and discovery second; I think this is nearly always the case. You have assumptions in your mind, but you should not be too strict (unlike some of our theoretical physicists who believe that they make the theories and the experimentalists then make the discoveries which just prove their theories or disprove them). Another thing which takes courage, especially among the young scientists, is to work somewhere where either they are alone, and nobody else understands what goes on in the field, or to develop and use a new method by which they can hope to do something which nobody has yet done or understood; all the specialists will laugh at them when they start. But it is by such things that you get a chance of discovering something which others have not appreciated because they have other ways of thinking.

Fonte: Krebs, H. A. & Shelley, J. H., orgs. 1975. The creative process in science and medicine. Amsterdã, Excerpta Medica.

15 setembro 2023

Empates

Mary Helena Allegretti

O empate consiste em uma tática espontânea de defesa da floresta contra as derrubadas, através da qual os seringueiros se reúnem, com suas famílias, e impedem, pela ação direta, a derrubada de árvores, planejada por algum fazendeiro. Vão até a área que está sendo preparada e desmontam os acampamentos dos peões, impedindo que a derrubada seja iniciada. Depois de criado o fato, argumentam com os proprietários, através da Justiça ou pela intermediação governamental. O primeiro empate foi realizado o município de Brasiléia, perto da fronteira do Acre com a Bolívia, em 1973, no Seringal Carmen. Até 1988 haviam sido realizadas mais de 40 ações como esta em vários municípios da região.

Fonte: Anderson, A. & mais 10. 1994. O destino da floresta. RJ, Relume Dumará.

13 setembro 2023

Petróleo, picanha e o cozimento da Terra. I. Contabilizando o ciclo global do carbono

Felipe A. P. L. Costa [*].

1. AS ESFERAS TERRESTRES.

Vista do espaço (ver aqui), a imagem que nós temos do nosso planeta, a depender da distância, é a de uma bolinha de gude azul [1]. O predomínio da coloração azulada tem a ver com o fato de que os oceanos ocupam a maior parte (~71%) da superfície terrestre [2].

Mas há outras colorações. Há tons esverdeados (vegetação densa), amarronzados (vegetação rarefeita, desertos ou áreas degradadas) e esbranquiçados (redemoinhos de nuvens, calotas polares e o topo congelado das montanhas mais altas) [3].

Tamanha variedade cromática reflete a presença de ao menos quatro esferas planetárias. São elas: litosfera (rochas, minerais e o solo que cultivamos), hidrosfera (oceanos e corpos de água doce), atmosfera (o oceano gasoso a envolver o planeta) e biosfera (o conjunto de seres vivos que dividem o planeta conosco) [4].

2. CICLOS BIOGEOQUÍMICOS.

Os elementos químicos estão a circular livre e espontaneamente dentro e entre as esferas. Um processo que faz parte da dinâmica natural do planeta.

Nas palavras de Deevey (1971, p. 166; tradução livre) [5]:

A tabela periódica inclui mais de 100 elementos; apesar disso, os ecólogos definem a biosfera como o local de interação de apenas quatro deles: hidrogênio, carbono, nitrogênio e oxigênio. Na tabela periódica, esses quatro elementos recebem os números 1, 6, 7 e 8. Esta definição, embora abrace a maior parte da química da vida, revela-se muito estreito; porém, quando o ampliamos para incluir o fósforo e o enxofre, como fazemos aqui, não vamos além do elemento de número 16 na tabela. Daí se deduz que nenhum elemento mais leve que o enxofre deve ser ignorado, nem pelos ecólogos nem por qualquer outro. O fato é que boa parte dos problemas humanos – todos os problemas ambientais ao menos – resultam da reatividade excepcional de seis dos 16 elementos mais leves.

Além das notáveis diferenças físicas, as esferas terrestres diferem muito em termos de composição química – elementos que são comuns na litosfera, por exemplo, são raros ou podem até estar ausentes na biosfera, e vice-versa. A depender das propriedades físicas e das afinidades químicas entre os elementos, os diferentes compartimentos que abrigam cada um deles estabelecem entre si fluxos de troca mais ou menos intensos.

Essa dinâmica caracteriza os chamados ciclos biogeoquímicos ou, mais especificamente, o ciclo global de cada elemento. Embora envolvam processos naturais de grandes dimensões e longo alcance, esses ciclos não estão imunes a perturbações causadas por atividades humanas. Veja o caso do ciclo do carbono.

3. ONDE ESTÁ O CARBONO?

Os compartimentos que abrigam quantidades expressivas de carbono podem ser arranjados em dois grandes domínios, o domínio de fluxos rápidos (cuja dinâmica pode ser medida em dias ou anos) e o de fluxos lentos (cuja dinâmica é medida em milhares ou milhões de anos).

O primeiro compartimento inclui os átomos de C que estão na atmosfera, no solo, nos oceanos e nas biotas (terrestres e aquáticas). O segundo, que é muito maior que o primeiro, concentra os átomos de C que estão estocados em depósitos minerais e em sedimentos marinhos profundos. Vamos passar os olhos, ainda que rapidamente, nesses compartimentos [6].

3.1. Fluxos rápidos.

O domínio dos fluxos rápidos pode ser subdividido da seguinte maneira:

++ 830 Gt de C estão na atmosfera (1 Gt – lê-se gigatonelada – equivale a 1 bilhão ou 1 × 10^9 toneladas), 240 Gt das quais são de origem antropogênica;

++ ~3,71 × 10^4 Gt de C inorgânico dissolvido nos oceanos (águas profundas e intermediárias), da quais 155 Gt são de origem antropogênica; mais 900 Gt em águas oceânicas superficiais; 3 Gt na biota marinha e outras 700 Gt de C orgânico dissolvido na água;
500 Gt de C na biota terrestre;

++ 2 × 10^3 Gt de C em solos normais; e

++ ~1,7 × 10^3 Gt de C em solos congelados (permafrost).

A distribuição, como se pode notar, é bastante desigual. Veja: 86,9% de todo o carbono rápido estão armazenados nos oceanos, sendo 84,8% em águas profundas ou intermediárias e 2,1% em águas superficiais. Outros 8,5% estão armazenados no solo, sendo 4,6% em solos, digamos, normais e 3,9% em solos congelados.

Somando esses percentuais, constatamos que 95,4% dos átomos de C estão concentrados no solo ou nos oceanos. Na contabilidade final, há ainda um pequeno percentual (1,6%) que aparece como carbono de origem orgânica dissolvido nos oceanos.

Sobram apenas 3%, que estão armazenados em dois compartimentos: as biotas terrestres e aquáticas (1,1%) e a atmosfera (1,9%). (Compare esses percentuais com a quantidade de carbono que está armazenada no solo.) Esses três compartimentos (biota, atmosfera e solo), aliás, estão a interagir o tempo todo, de tal modo que nós bem poderíamos rotular os fluxos entre eles de rapidíssimos.

3.2. Fluxos lentos.

O domínio dos fluxos lentos envolve dois grandes compartimentos, um deles gigantesco:

++ 2,5 × 10^7 Gt de C estocadas em depósitos minerais, incluindo 1,5 × 10^3 Gt em combustíveis fósseis, das quais ~365 Gt já foram extraídas; e

++ 1,75 × 10^3 Gt estocadas em sedimentos marinhos.

Comparando os dois domínios (lento vs. rápido), as desigualdades entre os estoques armazenados em diferentes compartimentos se tornam ainda mais impressionantes.

Eis o comentário de Corfield (2011, p. 108):

Coletivamente, as rochas são o maior reservatório de carbono na Terra. O tempo de residência do carbono dentro desse reservatório é da ordem de 100-200 Ma; porém, mesmo o carbono incorporado às rochas pode eventualmente entrar de novo na atmosfera, uma vez que processos geológicos, principalmente a formação de montanhas, trazem rochas profundamente enterradas para a superfície. O ciclo, então, começa novamente, conforme as rochas sofrem intemperismo e erosão pelo vento, água ou atividade biológica.

O total estimado de carbono presente na crosta terrestre [7] chega assim a 2,5045483 × 10^7 Gt, dos quais 99,83% estão armazenados em depósitos minerais. Diante da grandeza desse percentual, a massa de carbono presente nos compartimentos de fluxos rápidos soa como algo verdadeiramente insignificante.

E é aqui que reside um dos nós que este artigo pretende desatar: apesar das dimensões comparativamente diminutas, são os compartimentos de fluxo rápido ou rapidíssimo que estão a conduzir o ciclo do carbono em nosso planeta.

3.3. Os fluxos rápidos em números.

O CO2 atmosférico está constantemente fluindo entre os oceanos, o solo e a biosfera. A biota de terra firme, por exemplo, fixa 10^9 Gt de C a cada ano (equivalente a ~400 Gt de CO2), ao mesmo tempo em que libera (via respiração) 10^7 Gt (equivalente a ~392 Gt de CO2) [8]. Trocas semelhantes se dão entre os oceanos e a atmosfera, com um pequeno saldo líquido em favor dos primeiros.

Se parássemos por aí, a contabilidade global estaria mais ou menos equilibrada, visto que a absorção líquida em favor da biosfera e dos oceanos é compensada pela entrada de novas moléculas de CO2 vindo do interior da Terra (e.g., erupções vulcânicas). Mas a situação não é de equilíbrio. Pois as emissões de C de origem antropogênica (e.g., queima de combustíveis fósseis e uso da terra) estão a alterar o tamanho dos estoques assim como a intensidade dos fluxos naturais.

Um desdobramento mais ou menos óbvio e preocupante do que foi dito acima seria o seguinte: é possível interferir no ciclo natural do carbono adicionando aos compartimentos de fluxo rápido quantidades relativamente pequenas de carbono fóssil. Nesse sentido, a origem da crise climática ora em curso bem poderia ser descrita como resultado da transferência de carbono fóssil para a atmosfera. E olha que a quantidade já transferida (~365 Gt, conforme dito antes) é relativamente pequena [9].

4. CODA.

A queima de combustíveis fósseis (e.g., carvão mineral, petróleo e gás natural) é a mais importante fonte de energia a movimentar os negócios humanos em escala planetária. A combustão desses materiais, no entanto, não é um processo inócuo. Ao contrário, gera subprodutos nocivos e indesejáveis, como o monóxido (CO) e o dióxido de carbono (CO2) [10].

A emissão de gases-estufa de origem antropogênica (notadamente CO2) é um fenômeno antigo. Mas foi só após o advento da Revolução Industrial – e a proliferação de máquinas e motores movidos a combustíveis fósseis (ver aqui) – que os níveis de emissão alcançaram a estratosfera. A ponto de chegamos ao pesadelo atual: uma crise climática de alcance planetário.

Até as duas primeiras décadas do século 20, os maiores responsáveis pela emissão de carbono antropogênico eram atividades relacionadas ao uso da terra (e.g., desflorestamento e manutenção de grandes rebanhos). A balança começou a pender para o outro lado a partir da década de 1920, quando a queima de combustíveis fósseis assumiu a liderança. (O que de modo algum significa que as emissões oriundas do uso da terra se tornaram desprezíveis.)

Nos últimos anos (2012-2021), as emissões de carbono em escala planetária chegaram a uma média anual de 10,8 Gt. Desse total, 9,6 Gt vieram da queima de combustíveis fósseis e 1,2 Gt veio do uso da terra [11].

No quesito queima de combustíveis fósseis, a lista dos emissores é encabeçada pela China. A média anual dos chineses correspondente a quase três vezes a média do segundo colocado (Estados Unidos). Na lista dos maiores poluidores, aparecem em seguida a União Europeia, a Índia e o resto do mundo.

No quesito uso da terra, o Brasil assumiu a liderança. (Em seguida aparecem a Indonésia e o Congo, RD.) É uma péssima e vergonhosa notícia. Mas que tem a ver com a anarquia econômica e a corrupção política que assolaram o país após o golpe contra o governo Dilma.

Acho que já é o suficiente para dizer que qualquer mudança significativa nas estatísticas brasileiras (para mais ou para menos) terá consequências em escala planetária.

*

NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste Jornal GGN – e.g., Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; e A escrita diarística e o fumo de um corpo que arde.

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[1] Bola ou Bolinha de Gude Azul (ing., The Blue Marble) foi como ficou conhecida uma das primeiras imagens coloridas da Terra. Datada de 7/12/1972, a fotografia foi tirada pelo geólogo e astronauta estadunidense Harrison [Hagan] Schmitt (nascido em 1935). (Há uma imagem fotográfica anterior, datada de 1967. Mas foi tirada por um satélite e é relativamente pouco conhecida – ver aqui). Schmitt foi um dos três integrantes da Apollo 17, a última missão tripulada a pousar na Lua (7-19/12/1972).

[2] Uma combinação de propriedades físicas e químicas dá à água dos oceanos a sua coloração azulada – ver Garrison (2010).

[3] Os dois últimos a experimentar hoje um acelerado processo de degelo. Sobre o monitoramento das capas de gelo da Antártida, ver Stokes et al. (2022).

[4] Alguns autores identificam uma criosfera (a parte congelada da hidrosfera) ou adotam termos alternativos, como ecosfera (em vez de biosfera). Há ainda quem se refira ao conjunto de todas as esferas como Gaia – ver, e.g., Huggett (1999).

[5] São conhecidos hoje 118 elementos, 92 dos quais são encontrados na natureza. 80 desses 92 elementos têm ao menos um isótopo estável (ver aqui).

[6] Para detalhes numéricos, ver Ciais et al. (2013) e Friedlingstein et al. (2022); em port., Corfield (2011).

[7] De acordo com o atual modelo hegemônico, o interior da Terra é constituído pela sobreposição de três camadas concêntricas: crosta, manto e núcleo. A camada mais superficial é a crosta. É também a menos densa e a menos volumosa. Alcança entre 30 e 40 km de profundidade nos continentes (60-70 km nas montanhas mais elevadas); no fundo dos oceanos, a espessura varia entre 5 e 10 km. Para detalhes sobre a estrutura interna da Terra, ver o Cap. 4.

[8] No caso das terras cultivadas, os valores seriam 14 Gt (fixação) e 12 Gt (liberação). Em tempo: como 1 mol grama de CO2 (44 g) contém 12 g de C, para obter 10^9 ou 10^7 Gt de C são necessárias 399,67 ou 392,33 Gt de CO2, respectivamente.

[9] Que não haja dúvidas: 365 Gt de combustíveis fósseis são relativamente insignificantes em escala planetária, ainda que representem uma enormidade em escala humana.

[10] Combustão é um tipo de reação química em que átomos de um determinado material (comumente referido como material combustível) se combinam com átomos de oxigênio. Há liberação de energia, sobretudo na forma de luz e calor. Sobre a origem dos combustíveis fósseis, v. Okuno et al. (1982).

[11] Para pensar e refletir: Qual seria o destino de toda essa fumaça? [Ver aqui.]

*

REFERÊNCIAS CITADAS.

++ Ciais, PC & mais 14. 2013. Carbon and other biogeochemical cycles. In: Stocker, TF & mais 9, eds. Climate change 2013: The physical science basis. Cambridge, CUP.
++ Corfield, R. 2011 [2008]. O ciclo do carbono. In: Cockell, C, org. Sistema Terra-vida: Uma introdução. SP, Oficina de Textos.
++ Deevey, ES, Jr. 1972 [1970]. Los ciclos minerales. In: Scientific American, org. La biosfera. Madri, Alianza.
++ Friedlingstein, P & mais 105. 2022. Global carbon budget 2022. Earth System Science Data 14: 4811-4900.
++ Garrison, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª ed. SP, Cengage.
++ Huggett, RJ. 1999. Ecosphere, biosphere, or Gaia? What to call the global ecosystem. Global Ecology and Biogeography 8: 425-31.
++ Okuno, E & mais 2. 1982. Física para ciências biológicas e biomédicas. SP, Harbra.
++ Stokes, CR & mais 15. 2022. Response of the East Antarctic Ice Sheet to past and future climate change. Nature 608: 275-82.

* * *

A man who bridged the two cultures

Nancy G. Slack

In his long life Hutchinson left very little unexplored, both within and outside of ecology. Spectator sports and popular music were perhaps unexplored, as someone suggested at his Yale memorial service, but he actually taught a course at Yale with jazz musician Willie Ruff. And he famously seemed to find whatever his students and colleagues brought to him – ideas, hypotheses, organisms, cultural objects – “profoundly interesting.” Hutchinson was certainly a polymath, a rare scientist who bridged the two cultures, the scientific and the humanistic, so clearly portrayed in the books of C. P. Snow.

Fonte: Slack, N. G. 2010. G. Evelyn Hutchinson and the invention of modern ecology. New Haven, Yale UP.

12 setembro 2023

203 meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/9, o Poesia Contra a Guerra completa 16 anos e onde meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘202 meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Christopher Longuet-Higgins, Howard H. Pattee, Howard L. Penman, Irenäus Eibl-Eibesfeldt, Jean Louis Valentin, Melvin Konner, Neal Miller, Otto Maria Carpeaux e Yves Bouligand. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Pedro Alexandrino Borges, Victor Meirelles e Zeferino da Costa.

10 setembro 2023

A primeira missa


Victor Meirelles [de Lima] (1832-1903). Primeira missa no Brasil. 1861.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 setembro 2023

Interlunar

Maranhão Sobrinho

Entre nuvens cruéis de púrpura e gerânio,
rubro como, de sangue, um hoplita messênio,
o sol, vencido, desce o planalto de urânio
do ocaso, na mudez de um recolhido essênio...

Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
da tarde, que me evoca os olhos de Stephanio
Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!

O ônix das sombras cresce ao trágico declínio
do dia que, a lembrar piratas do mar Jônio,
põe, no ocaso, clarões vermelhos de assassínio...

Vem a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,
vara o estranho solar da Morte e do Demônio
com as torres medievais as sombras do Interlúnio...

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. SP, Ibep. Poema publicado em livro em 1908.

07 setembro 2023

Análise de agrupamento

Jean Louis Valentin

Agrupar objetos consiste em reconhecer entre eles um grau de similaridade suficiente para reuni-los num mesmo conjunto. Os métodos ecológicos de agrupamento devem poder destacar os grupos de objetos similares entre si, deixando de lado os pontos intermediários que permaneçam geralmente entre os grupos quando a amostragem é suficientemente extensa. A não ser que o meio físico seja fortemente descontínuo e que a amostragem tenha sido realizada de cada lado de um forte gradiente, o ecólogo terá geralmente dificuldade em definir nitidamente grupos de amostras ou de espécies, em virtude do conceito de continuum que caracteriza os ecossistemas.

Fonte: Valentin, J. L. 2000. Ecologia numérica. RJ, Interciência.

05 setembro 2023

Petróleo, picanha, soja e perdigotos: A receita brasileira para cozinhar o planeta

Felipe A. P. L. Costa [*].

RESUMO. – A crise climática ora em curso é fruto de um desequilíbrio: a transferência forçada de grandes quantidades de carbono oriundas de depósitos minerais milenares (parte do domínio dos fluxos lentos, onde estão 99,8% de todo o carbono encontrado na crosta terrestre) para a atmosfera (parte do domínio dos fluxos rápidos). O aquecimento global (leia-se: a intensificação de um processo natural que é o efeito estufa) pode ser descrito como o resultado de uma cascata de eventos: à medida que aumenta a quantidade de partículas em suspensão no ar, também aumentam o número de colisões (raios solares vs. partículas) e o tempo de retenção do calor. Reter calor por mais tempo implica em elevar a temperatura do ar, um fenômeno que vem sendo registrado em diferentes partes do mundo, em diferentes estações do ano. O desconforto térmico, a fome e a proliferação de doenças estão a se agravar. Mas nada é tão ruim que não possa piorar – veja, por exemplo, o caso do governo Temer. Manter os braços cruzados levará a um aquecimento global ainda mais intenso – o aquecimento pode facilmente se converter em cozimento global. É urgente e inadiável que os governos adotem medidas efetivas contra esse estado de coisas. As soluções existem e são conhecidas. Frear, reduzir e, por fim, zerar as emissões de gases-estufa (e.g., CO2 e CH4) é a saída mais sensata que temos ao nosso alcance. São ao menos dois tipos de medidas: (i) combater o desperdício e o excesso de consumo (e.g., eletricidade); e (ii) frear a anarquia econômica – digo: frear a ação daqueles agentes econômicos que seguem a emporcalhar a atmosfera, notadamente as petroleiras e o agronegócio (e.g., a monocultura extensiva e a pecuária).

*

03 setembro 2023

El problema de la jerarquía biológica

Howard H. Pattee

El propósito central de estas discusiones desarrolladas en las reuniones tenidas en Villa Serbelloni durante los últimos tres años, ha sido explorar el significado de ‘teoría’ en biología, teoría en el sentido de principios generales característicos de los estados vivientes de la materia. Puesto que mi instrucción ha sido la de un físico, más dos primeras contribuciones a estas discusiones fueron otros tantos intentos de definir el problema de la reducción de los procesos hereditarios moleculares a las leyes elementales de la física. Me doy cuenta de que numerosos biólogos moleculares han afirmado haber realizado ya esta tarea. Pero lo que tales biólogos han desarrollado en realidade es uno modelo de la célula que se comporta de un modo muy semejante a una máquina clásica o autómata en la que el ‘secreto de la herencia’ se afirma haberlo encontrado en la química ‘normal’ de los ácidos nucleicos y enzimas. A exceptión del hecho de que las partes de esta máquina son moléculas individuales, la implicación es que si las partes funcionan como una máquina, pueden ser descritas como una máquina, y las máquinas las comprendemos en términos de las leyes físicas eleementales.

Fonte: Waddington, C. H., ed. 1976 [1968-70]. Hacia una biología teórica. Madri, Alianza.

01 setembro 2023

El ciclo del agua

Howard L. Penman

La sustancia simple más abundante en la biosfera es, con gran diferencia, el común pero extraño compuesto inorgánico llamado agua. En una forma o en otra, los océanos, casquetes polares, lagos, ríos, suelos y atmosfera de la Tierra, contienen 1.500 millones de kilómetros cúbicos de agua. Casi todas las propiedades físicas del agua son singulares o tienen valores límites extremos. Sus extraordinarias propiedades físicas le confieren, a su vez, propiedades químicas únicas. De estas características físicas y químicas procede la importancia biológica del agua.

Fonte: Penman, H. L. 1972 [1970]. In: Scientific American, org. La biosfera. Madri, Alianza.

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