Felipe A. P. L. Costa [*].
1. AS ESFERAS TERRESTRES.
Vista do espaço (ver aqui), a imagem que nós temos do nosso planeta, a depender da distância, é a de uma bolinha de gude azul [1]. O predomínio da coloração azulada tem a ver com o fato de que os oceanos ocupam a maior parte (~71%) da superfície terrestre [2].
Mas há outras colorações. Há tons esverdeados (vegetação densa), amarronzados (vegetação rarefeita, desertos ou áreas degradadas) e esbranquiçados (redemoinhos de nuvens, calotas polares e o topo congelado das montanhas mais altas) [3].
Tamanha variedade cromática reflete a presença de ao menos quatro esferas planetárias. São elas: litosfera (rochas, minerais e o solo que cultivamos), hidrosfera (oceanos e corpos de água doce), atmosfera (o oceano gasoso a envolver o planeta) e biosfera (o conjunto de seres vivos que dividem o planeta conosco) [4].
2. CICLOS BIOGEOQUÍMICOS.
Os elementos químicos estão a circular livre e espontaneamente dentro e entre as esferas. Um processo que faz parte da dinâmica natural do planeta.
Nas palavras de Deevey (1971, p. 166; tradução livre) [5]:
A tabela periódica inclui mais de 100 elementos; apesar disso, os ecólogos definem a biosfera como o local de interação de apenas quatro deles: hidrogênio, carbono, nitrogênio e oxigênio. Na tabela periódica, esses quatro elementos recebem os números 1, 6, 7 e 8. Esta definição, embora abrace a maior parte da química da vida, revela-se muito estreito; porém, quando o ampliamos para incluir o fósforo e o enxofre, como fazemos aqui, não vamos além do elemento de número 16 na tabela. Daí se deduz que nenhum elemento mais leve que o enxofre deve ser ignorado, nem pelos ecólogos nem por qualquer outro. O fato é que boa parte dos problemas humanos – todos os problemas ambientais ao menos – resultam da reatividade excepcional de seis dos 16 elementos mais leves.
Além das notáveis diferenças físicas, as esferas terrestres diferem muito em termos de composição química – elementos que são comuns na litosfera, por exemplo, são raros ou podem até estar ausentes na biosfera, e vice-versa. A depender das propriedades físicas e das afinidades químicas entre os elementos, os diferentes compartimentos que abrigam cada um deles estabelecem entre si fluxos de troca mais ou menos intensos.
Essa dinâmica caracteriza os chamados ciclos biogeoquímicos ou, mais especificamente, o ciclo global de cada elemento. Embora envolvam processos naturais de grandes dimensões e longo alcance, esses ciclos não estão imunes a perturbações causadas por atividades humanas. Veja o caso do ciclo do carbono.
3. ONDE ESTÁ O CARBONO?
Os compartimentos que abrigam quantidades expressivas de carbono podem ser arranjados em dois grandes domínios, o domínio de fluxos rápidos (cuja dinâmica pode ser medida em dias ou anos) e o de fluxos lentos (cuja dinâmica é medida em milhares ou milhões de anos).
O primeiro compartimento inclui os átomos de C que estão na atmosfera, no solo, nos oceanos e nas biotas (terrestres e aquáticas). O segundo, que é muito maior que o primeiro, concentra os átomos de C que estão estocados em depósitos minerais e em sedimentos marinhos profundos. Vamos passar os olhos, ainda que rapidamente, nesses compartimentos [6].
3.1. Fluxos rápidos.
O domínio dos fluxos rápidos pode ser subdividido da seguinte maneira:
++ 830 Gt de C estão na atmosfera (1 Gt – lê-se gigatonelada – equivale a 1 bilhão ou 1 × 10^9 toneladas), 240 Gt das quais são de origem antropogênica;
++ ~3,71 × 10^4 Gt de C inorgânico dissolvido nos oceanos (águas profundas e intermediárias), da quais 155 Gt são de origem antropogênica; mais 900 Gt em águas oceânicas superficiais; 3 Gt na biota marinha e outras 700 Gt de C orgânico dissolvido na água;
500 Gt de C na biota terrestre;
++ 2 × 10^3 Gt de C em solos normais; e
++ ~1,7 × 10^3 Gt de C em solos congelados (permafrost).
A distribuição, como se pode notar, é bastante desigual. Veja: 86,9% de todo o carbono rápido estão armazenados nos oceanos, sendo 84,8% em águas profundas ou intermediárias e 2,1% em águas superficiais. Outros 8,5% estão armazenados no solo, sendo 4,6% em solos, digamos, normais e 3,9% em solos congelados.
Somando esses percentuais, constatamos que 95,4% dos átomos de C estão concentrados no solo ou nos oceanos. Na contabilidade final, há ainda um pequeno percentual (1,6%) que aparece como carbono de origem orgânica dissolvido nos oceanos.
Sobram apenas 3%, que estão armazenados em dois compartimentos: as biotas terrestres e aquáticas (1,1%) e a atmosfera (1,9%). (Compare esses percentuais com a quantidade de carbono que está armazenada no solo.) Esses três compartimentos (biota, atmosfera e solo), aliás, estão a interagir o tempo todo, de tal modo que nós bem poderíamos rotular os fluxos entre eles de rapidíssimos.
3.2. Fluxos lentos.
O domínio dos fluxos lentos envolve dois grandes compartimentos, um deles gigantesco:
++ 2,5 × 10^7 Gt de C estocadas em depósitos minerais, incluindo 1,5 × 10^3 Gt em combustíveis fósseis, das quais ~365 Gt já foram extraídas; e
++ 1,75 × 10^3 Gt estocadas em sedimentos marinhos.
Comparando os dois domínios (lento vs. rápido), as desigualdades entre os estoques armazenados em diferentes compartimentos se tornam ainda mais impressionantes.
Eis o comentário de Corfield (2011, p. 108):
Coletivamente, as rochas são o maior reservatório de carbono na Terra. O tempo de residência do carbono dentro desse reservatório é da ordem de 100-200 Ma; porém, mesmo o carbono incorporado às rochas pode eventualmente entrar de novo na atmosfera, uma vez que processos geológicos, principalmente a formação de montanhas, trazem rochas profundamente enterradas para a superfície. O ciclo, então, começa novamente, conforme as rochas sofrem intemperismo e erosão pelo vento, água ou atividade biológica.
O total estimado de carbono presente na crosta terrestre [7] chega assim a 2,5045483 × 10^7 Gt, dos quais 99,83% estão armazenados em depósitos minerais. Diante da grandeza desse percentual, a massa de carbono presente nos compartimentos de fluxos rápidos soa como algo verdadeiramente insignificante.
E é aqui que reside um dos nós que este artigo pretende desatar: apesar das dimensões comparativamente diminutas, são os compartimentos de fluxo rápido ou rapidíssimo que estão a conduzir o ciclo do carbono em nosso planeta.
3.3. Os fluxos rápidos em números.
O CO2 atmosférico está constantemente fluindo entre os oceanos, o solo e a biosfera. A biota de terra firme, por exemplo, fixa 10^9 Gt de C a cada ano (equivalente a ~400 Gt de CO2), ao mesmo tempo em que libera (via respiração) 10^7 Gt (equivalente a ~392 Gt de CO2) [8]. Trocas semelhantes se dão entre os oceanos e a atmosfera, com um pequeno saldo líquido em favor dos primeiros.
Se parássemos por aí, a contabilidade global estaria mais ou menos equilibrada, visto que a absorção líquida em favor da biosfera e dos oceanos é compensada pela entrada de novas moléculas de CO2 vindo do interior da Terra (e.g., erupções vulcânicas). Mas a situação não é de equilíbrio. Pois as emissões de C de origem antropogênica (e.g., queima de combustíveis fósseis e uso da terra) estão a alterar o tamanho dos estoques assim como a intensidade dos fluxos naturais.
Um desdobramento mais ou menos óbvio e preocupante do que foi dito acima seria o seguinte: é possível interferir no ciclo natural do carbono adicionando aos compartimentos de fluxo rápido quantidades relativamente pequenas de carbono fóssil. Nesse sentido, a origem da crise climática ora em curso bem poderia ser descrita como resultado da transferência de carbono fóssil para a atmosfera. E olha que a quantidade já transferida (~365 Gt, conforme dito antes) é relativamente pequena [9].
4. CODA.
A queima de combustíveis fósseis (e.g., carvão mineral, petróleo e gás natural) é a mais importante fonte de energia a movimentar os negócios humanos em escala planetária. A combustão desses materiais, no entanto, não é um processo inócuo. Ao contrário, gera subprodutos nocivos e indesejáveis, como o monóxido (CO) e o dióxido de carbono (CO2) [10].
A emissão de gases-estufa de origem antropogênica (notadamente CO2) é um fenômeno antigo. Mas foi só após o advento da Revolução Industrial – e a proliferação de máquinas e motores movidos a combustíveis fósseis (ver aqui) – que os níveis de emissão alcançaram a estratosfera. A ponto de chegamos ao pesadelo atual: uma crise climática de alcance planetário.
Até as duas primeiras décadas do século 20, os maiores responsáveis pela emissão de carbono antropogênico eram atividades relacionadas ao uso da terra (e.g., desflorestamento e manutenção de grandes rebanhos). A balança começou a pender para o outro lado a partir da década de 1920, quando a queima de combustíveis fósseis assumiu a liderança. (O que de modo algum significa que as emissões oriundas do uso da terra se tornaram desprezíveis.)
Nos últimos anos (2012-2021), as emissões de carbono em escala planetária chegaram a uma média anual de 10,8 Gt. Desse total, 9,6 Gt vieram da queima de combustíveis fósseis e 1,2 Gt veio do uso da terra [11].
No quesito queima de combustíveis fósseis, a lista dos emissores é encabeçada pela China. A média anual dos chineses correspondente a quase três vezes a média do segundo colocado (Estados Unidos). Na lista dos maiores poluidores, aparecem em seguida a União Europeia, a Índia e o resto do mundo.
No quesito uso da terra, o Brasil assumiu a liderança. (Em seguida aparecem a Indonésia e o Congo, RD.) É uma péssima e vergonhosa notícia. Mas que tem a ver com a anarquia econômica e a corrupção política que assolaram o país após o golpe contra o governo Dilma.
Acho que já é o suficiente para dizer que qualquer mudança significativa nas estatísticas brasileiras (para mais ou para menos) terá consequências em escala planetária.
*
NOTAS.
[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste Jornal GGN – e.g., Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; e A escrita diarística e o fumo de um corpo que arde.
Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.
[1] Bola ou Bolinha de Gude Azul (ing., The Blue Marble) foi como ficou conhecida uma das primeiras imagens coloridas da Terra. Datada de 7/12/1972, a fotografia foi tirada pelo geólogo e astronauta estadunidense Harrison [Hagan] Schmitt (nascido em 1935). (Há uma imagem fotográfica anterior, datada de 1967. Mas foi tirada por um satélite e é relativamente pouco conhecida – ver aqui). Schmitt foi um dos três integrantes da Apollo 17, a última missão tripulada a pousar na Lua (7-19/12/1972).
[2] Uma combinação de propriedades físicas e químicas dá à água dos oceanos a sua coloração azulada – ver Garrison (2010).
[3] Os dois últimos a experimentar hoje um acelerado processo de degelo. Sobre o monitoramento das capas de gelo da Antártida, ver Stokes et al. (2022).
[4] Alguns autores identificam uma criosfera (a parte congelada da hidrosfera) ou adotam termos alternativos, como ecosfera (em vez de biosfera). Há ainda quem se refira ao conjunto de todas as esferas como Gaia – ver, e.g., Huggett (1999).
[5] São conhecidos hoje 118 elementos, 92 dos quais são encontrados na natureza. 80 desses 92 elementos têm ao menos um isótopo estável (ver aqui).
[6] Para detalhes numéricos, ver Ciais et al. (2013) e Friedlingstein et al. (2022); em port., Corfield (2011).
[7] De acordo com o atual modelo hegemônico, o interior da Terra é constituído pela sobreposição de três camadas concêntricas: crosta, manto e núcleo. A camada mais superficial é a crosta. É também a menos densa e a menos volumosa. Alcança entre 30 e 40 km de profundidade nos continentes (60-70 km nas montanhas mais elevadas); no fundo dos oceanos, a espessura varia entre 5 e 10 km. Para detalhes sobre a estrutura interna da Terra, ver o Cap. 4.
[8] No caso das terras cultivadas, os valores seriam 14 Gt (fixação) e 12 Gt (liberação). Em tempo: como 1 mol grama de CO2 (44 g) contém 12 g de C, para obter 10^9 ou 10^7 Gt de C são necessárias 399,67 ou 392,33 Gt de CO2, respectivamente.
[9] Que não haja dúvidas: 365 Gt de combustíveis fósseis são relativamente insignificantes em escala planetária, ainda que representem uma enormidade em escala humana.
[10] Combustão é um tipo de reação química em que átomos de um determinado material (comumente referido como material combustível) se combinam com átomos de oxigênio. Há liberação de energia, sobretudo na forma de luz e calor. Sobre a origem dos combustíveis fósseis, v. Okuno et al. (1982).
[11] Para pensar e refletir: Qual seria o destino de toda essa fumaça? [Ver aqui.]
*
REFERÊNCIAS CITADAS.
++ Ciais, PC & mais 14. 2013. Carbon and other biogeochemical cycles. In: Stocker, TF & mais 9, eds. Climate change 2013: The physical science basis. Cambridge, CUP.
++ Corfield, R. 2011 [2008]. O ciclo do carbono. In: Cockell, C, org. Sistema Terra-vida: Uma introdução. SP, Oficina de Textos.
++ Deevey, ES, Jr. 1972 [1970]. Los ciclos minerales. In: Scientific American, org. La biosfera. Madri, Alianza.
++ Friedlingstein, P & mais 105. 2022. Global carbon budget 2022. Earth System Science Data 14: 4811-4900.
++ Garrison, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª ed. SP, Cengage.
++ Huggett, RJ. 1999. Ecosphere, biosphere, or Gaia? What to call the global ecosystem. Global Ecology and Biogeography 8: 425-31.
++ Okuno, E & mais 2. 1982. Física para ciências biológicas e biomédicas. SP, Harbra.
++ Stokes, CR & mais 15. 2022. Response of the East Antarctic Ice Sheet to past and future climate change. Nature 608: 275-82.
* * *