31 maio 2024

Em Paris, à noite


Louis [Émile] Anquetin (1861-1932). Femme aux Champs-Élysées la nuit. 1889-93.

Fonte da foto: Wikipedia.

30 maio 2024

O tesouro de Tortuguero

Don Moser

O enclave costeiro chamado Tortuguero, que se estende ao longo do litoral do Caribe na Costa Rica, é um dos lugares mais singulares da América Central. Nele há quatro hábitats distintos, cada um com suas peculiaridades, sua fauna e sua flora. Diante do mar há uma extensão de praia arenosa [...]. Atrás dela, uma lagoa estreita, ligada ao mar por uma das extremidades e alimentada por um rio pela outra. Atrás da lagoa, acha-se uma floresta costeira cortada por riachos serpenteantes. E na periferia da floresta existe um complexo de pântanos.

Fonte: Moser, D. 1985. Selvas da América Central. RJ, Cidade Cultural.

29 maio 2024

A criação da Província do Amazonas

Adélia Engrácia de Oliveira

Quando aderiram à Independência, os amazonenses esperavam constituir uma Província do Império, o que lhes daria maior liberdade de ação. Mas, apesar de que a Carta Constitucional de 1824 dissesse em seu artigo 2°, “que o Império ficava dividido nas Províncias então existentes”, ao serem nomeados os presidentes para as Províncias, o Alto Amazonas não foi incluído. Ficou, então, como Comarca, subordinada à Província do Pará, o que foi consumado em 1825. No final desse mesmo ano a Câmara de Barcelos instalou-se no Lugar da Barra que, em 1848, foi elevado à categoria de cidade, com o nome de cidade da Barra do Rio Negro (Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro) e, em 1856, passou a ser Manaus.

Fonte: Oliveira, A. E. 1983. Ocupação humana. In: Salati, E. & mais 3, orgs. Amazônia: desenvolvimento, integração e ecologia. SP, Brasiliense & CNPq.

28 maio 2024

Se você é normal, tem problemas

Paulo Rosas

“Viver é perigoso”, relembro Diadorim. Viver não é fácil. De cada um exige a vida o esforço constante de adaptação. De integração. De resolução de problemas.

Se você é normal, tem problemas. Nem é um atributo de sua idade ter problemas. É uma condição do ser humano.

Fonte: Rosas, P. 1977. Vocação e profissão, 2ª ed. Petrópolis, Vozes.

27 maio 2024

Aprendizagem e ensino

Peter Graham Richmond

Em termos gerais, a tese de Piaget parece ter aplicação educacional de duas maneiras principais. Em primeiro lugar, há seu ponto de vista sobre a maneira pela qual o intelecto e o ambiente interagem entre si: o processo de adaptação, a influência de ações físicas com coisas, cooperação social e linguagem. Esta parte da psicologia poderia ser relevante para o método de ensino e a organização de situações de aprendizagem. Em segundo lugar, há a sequência desenvolvimental de Piaget com modos de pensamento e alimentos ambientais apropriados a cada estágio. Esta parte da psicologia poderia ser relevante para o conteúdo de lição e a organização de currículo em idades diferentes.

Fonte: Richmond, P. G. 1981 [1970]. Piaget: Teoria e prática. SP, Ibrasa.

26 maio 2024

A origem da consciência: o 'eu' como produto da vida em grupo

Felipe A. P. L. Costa [*].

Nós, seres humanos, somos dotados de uma característica particularmente notável: a capacidade de autorreconhecimento. Mas não nascemos assim; trata-se de uma característica que se desenvolve ao longo dos dois primeiros anos de vida. Por volta de 2 anos de idade, os bebês humanos já reconhecem a si mesmos como objetos dignos de atenção. É a emergência do eu (self), como diriam os psicólogos [1].

Nas palavras de Piaget (Evans 1980, p. 55):

[N]o começo [do desenvolvimento da criança] você tem o Eu, o qual não se conhece a si mesmo; e você tem os objetos que não são permanentes; e as interações entre esses dois polos. O conhecimento não começa no Eu, e não começa no objeto. Começa nas interações. Desde que tais interações entre sujeito e objeto são formadas por ações isoladas, não coordenadas, não existem nem objetos, nem um sujeito. [...]
  O desenvolvimento da consciência de si mesmo como sujeito ativo, de um lado, e o mundo dos objetos independentes, relacionados um ao outro, casualmente ou espacialmente, toma lugar a um só e mesmo tempo, quando a criança coordena mais e mais suas ações. Ela não pode tomar consciência de si mesma, sem, ao mesmo tempo, tomar consciência da independência dos objetos à volta dela, e vice-versa. É a mesma coordenação.

Mas não nos enganemos: o autorreconhecimento não é um traço biológico restrito aos seres humanos.

1. AUTOCONSCIÊNCIA OU CONSCIÊNCIA DE SI.

Em termos operacionais, o autorreconhecimento nos permite estabelecer uma linha divisória entre o eu (primeira pessoa) e o mundo, notadamente os outros indivíduos com os quais nós convivemos.

E mais: embora esteja relacionada com outros fenômenos mentais, não deve ser confundida com eles. Estou aqui a pensar no fenômeno da consciência e, mais ainda, no caso da autoconsciência (self-consciousness) ou da consciência de si (self-awareness) [2].

Diferentemente do que imaginam alguns, a autoconsciência também não é uma exclusividade humana. Chimpanzés e orangotangos passam no teste do espelho, por exemplo, uma evidência de que esses animais reconhecem a si mesmos como objetos dignos de atenção [3]. Há outros candidatos a entrar nesse clube, incluindo vertebrados não mamíferos e até mesmo alguns invertebrados.

Para os nossos propósitos, porém, o mais importante a registrar aqui seria o seguinte: até onde sabemos, todos os animais dotados de autoconsciência são também animais de hábitos sociais. Sim, todos eles vivem (temporária ou permanentemente) em grupos. E isso não parece ser um mero capricho da Mãe Natureza.

2. AUTOCONSCIÊNCIA COMO PRODUTO DA VIDA EM GRUPO.

Uma das hipóteses formuladas para explicar a origem da autoconsciência está assentada na ideia de que a dinâmica da vida social é bastante problemática. Digo: a vida em grupo impõe desafios ainda mais duros e permanentes que os desafios enfrentados por animais solitários. Nas palavras de Lei (2023, p. 6; tradução livre):

[I]nterações sociais, como colaboração, desentendimento, relações familiares e amizade, oferecem mais desafios cognitivos do que problemas físicos, como caçar alimentos de forma independente. Por isso, os animais sociais estão expostos a mais oportunidades de desenvolvimento cognitivo do que os solitários, que interagem mais frequentemente com desafios físicos menos desafiadores. À medida que uma espécie se torna cognitivamente mais avançada, devido ao seu ambiente social, o mesmo se dará com a sua capacidade de enfrentar sociedades mais complexas, o que, por sua vez, eleva suas capacidades cognitivas, contribuindo para a coevolução entre a complexidade cognitiva e a social. Isso proporciona às espécies sociais maiores capacidades cognitivas e, portanto, uma maior probabilidade de desenvolver autoconsciência.

É importante chamar a atenção para dois dos grandes desafios impostos pela vida em grupo: a necessidade de (1) ler os pensamentos e deduzir as intenções de outros indivíduos; e (2) calcular antecipadamente a repercussão e os desdobramentos das próprias atitudes perante os demais integrantes do grupo.

Alguns leitores podem estranhar o vocabulário usado acima, mas o que está em questão são experiências de vida bastante familiares a todos nós. Veja, por exemplo, este comentário de Fry (1978, p. 84; ênfase minha):

Duas pessoas que tenham vivido juntas por muitos anos acabam, habitualmente, trocando observações ocasionais sem qualquer atividade falante ou auditiva. Uma delas sabe o que a outra pretende dizer e age de acordo com isso, sem que nenhuma dê maior atenção à questão. Será esse um caso paranormal, de telepatia? [4] Não é necessário recorrer a tal explicação para esse fenômeno, pois o casal que se comunica sem se falar na realidade está fazendo o mesmo que todos nós fazemos quando falamos: vale-se do seu conhecimento sobre o que deve esperar.

Em suma, interações íntimas e complexas (e.g., criar, manter e solidificar redes de aliança) formariam um cenário particularmente propício ao desenvolvimento de uma mente inteligente e, mais especificamente, autoconsciente. Por sua vez, o desenvolvimento de mentes com esses traços teria permitido a emergência de um sem número de personalidades, todas únicas e distintas, e capazes de organizar e manter a integridade pessoal em contextos sociais.

*

NOTAS.

[*] Este artigo contém material extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados – e.g., Livros, lentes & afins; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Quem quer ser um cientista?; Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Podemos aprender com os nossos erros; e Ciência, tecnologia, negócios. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] Dois comentários. Primeiro. De acordo com modelo proposto pelo psicólogo suíço Jean [William Fritz] Piaget (1896-1980), o desenvolvimento mental da criança passa por uma sequência fixa de etapas, correspondendo às seguintes fases da vida (Piaget 1976): (i) recém-nascido e lactante (0-2 anos) – inclui a etapa dos reflexos ou ajustes hereditários, dos primeiros hábitos motores e da inteligência sensório-motora; (ii) primeira infância (2-7 anos) – inclui a etapa da inteligência intuitiva, dos sentimentos interindividuais e das relações sociais de submissão aos adultos; (iii) segunda infância (7-12 anos) – inclui a etapa das operações intelectuais concretas e dos sentimentos morais e sociais de cooperação; e (iv) adolescência (12-15 anos) – inclui a etapa das operações intelectuais abstratas, da formação da personalidade e da inserção afetiva e intelectual na sociedade dos adultos. Segundo. Sobre o uso do termo self, eis o comentário de Thomas (1980, p. 11): “O Self em inglês é termo que, em sua significação, abrange o eu, a parte que age, e o mim, as atitudes que o indivíduo assume para com o eu.” E mais (idem, p. 11-2): “Trata-se de uma palavra interessante, formada há muito tempo, em período de maior ambiguidade social do que seria de se esperar. A raiz original era se, ou seu, pronome da terceira pessoa, simplesmente, e a maioria dos vocábulos que dele descendem, à exceção do próprio self, foi constituída para aludir a outras pessoas de certo modo interligadas. Se era também usado para indicar algo exterior ou à parte, resultando em palavras como ‘separado’, ‘secreto’ e ‘segregado’. De uma extensão da raiz, swedh, passou ao grego como ethnos, significando ‘gente como nós’, e ethos, ‘os costumes dessa gente’. ‘Ética’ significa comportamento de pessoas parecidas conosco, a nossa própria ética.”

[2] A literatura sobre o mistério da consciência é vastíssima e não é propósito desde livro adentrar nessa seara. Para um ponto de vista particularmente inspirador, ver Humphrey (1976); para caracterizações (em port.) da autoconsciência, ver, e.g., Searle (1998) e Trefil (1999).

[3] Sobre as origens (ontogenia e filogenia) da consciência, ver, e.g., Mashour & Alkire (2013); para um estudo pioneiro envolvendo o teste do espelho, Gallup (1970), e, para uma revisão recente, Lei (2023). Este último assim descreveu o teste (Lei 2023, p. 1; tradução livre): “No estágio final [do teste], [...] uma marca inodora é colocada em uma parte do corpo que normalmente não pode ser vista. Depois disso, um espelho é colocado diante do animal e, se ele investiga a marca usando o reflexo dela, isso é considerado uma evidência de autorreconhecimento. É importante estabelecer uma diferença entre autorreconhecimento e autoconsciência. O autorreconhecimento do espelho representa apenas a autoconsciência mais básica, não a autoconsciência plena. [...] Todavia, uma incapacidade de passar no teste do espelho não indica necessariamente uma falta de autorreconhecimento.”

[4] A telepatia talvez venha a se revelar um fenômeno natural legítimo (e.g., Sheldrake 1999).

*

REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Evans, RI. 1980. Jean Piaget: O homem e suas idéias. RJ, Forense.
+ Fry, D. 1978 [1977]. Homo loquens: O homem como animal falante. RJ, Zahar.
+ Gallup, G. 1970. Chimpanzees: self-recognition. Science 167: 86-7.
+ Humphrey, N. 1976. The social function of intellect. In: PPG Bateson & RA Hinde, eds. Growing points in ethology. Cambridge, CUP.
+ Lei, Y. 2023. Sociality and self-awareness in animals. Frontiers in Psychology 13: 1065638.
+ Mashour, GA & Alkire, MT. 2013. Evolution of consciousness: Phylogeny, ontogeny, and emergence from general anesthesia. Proceedings of the National Academy of Sciences 110: 10357-64.
+ Piaget, J. 1976. Seis estudos de psicologia. Barcelona, Barral.
+ ---. 1983. Piaget – Coleção Os Pensadores, 2ª ed. SP, Abril.
+ Searle, JR. 1998 [1997]. O mistério da consciência. RJ, Paz e Terra.
+ Sheldrake, R. 1999 [1995]. Sete experimentos que podem mudar o mundo. SP, Cultrix.
+ Thomas, L. 1980 [1979]. A medusa e a lesma. RJ, Nova Fronteira.
+ Trefil, J. 1999 [1997]. Somos diferentes? RJ, Rocco.

* * *

24 maio 2024

A consciência de si e as interações

Jean Piaget

[N]o começo [do desenvolvimento da criança] você tem o Eu, o qual não se conhece a si mesmo; e você tem os objetos que não são permanentes; e as interações entre esses dois polos. O conhecimento não começa no Eu, e não começa no objeto. Começa nas interações. Desde que tais interações entre sujeito e objeto são formadas por ações isoladas, não coordenadas, não existem nem objetos, nem um sujeito. [...]

O desenvolvimento da consciência de si mesmo como sujeito ativo, de um lado, e o mundo dos objetos independentes, relacionados um ao outro, casualmente ou espacialmente, toma lugar a um só e mesmo tempo, quando a criança coordena mais e mais suas ações. Ela não pode tomar consciência de si mesma, sem, ao mesmo tempo, tomar consciência da independência dos objetos à volta dela, e vice-versa. É a mesma coordenação.

Fonte: Evans, RI. 1980. Jean Piaget: O homem e suas idéias. RJ, Forense.

22 maio 2024

Inepta e adepta da distorção factual, Folha erra até quando o assunto são as baratas


Felipe A. P. L. Costa [*].

A Folha de S. Paulo – o ‘maior jornal do país’ – enfrenta hoje um acelerado processo de decomposição. É uma pena. Pois acho verdadeiramente escandaloso viver em um país tão grande e tão rico e ainda assim desprovido de ao mesmo um bom jornal de circulação nacional. (Estou a pensar em jornais que levam a sério os fatos.)

No início de maio, por exemplo, já com o Rio Grande do Sul debaixo d’água, a Folha alardeou a cantilena de que o governo federal teria recusado ajuda do governo uruguaio. Na melhor das hipóteses, podemos dizer que foi uma ilação pornográfica. Mesmo diante dos desmentidos oficiais, os editores não voltaram atrás. Pior: insistiram na divulgação de manchetes mentirosas (ver aqui).

BARATAS-D’ÁGUA NÃO SÃO BARATAS.

Houve uma época em que eu me importava mais com as barbeiragens publicadas pela Folha, sobretudo no caso da editoria de Ciência (e.g., ver aqui e aqui). Vira e mexe, ainda faço visitas ocasionais ou recebo comentários enviados por algum colega. Mas simplesmente deixei de levar o jornal a sério.

No início da tarde de ontem (21), por exemplo, tive o desprazer de me deparar com a mais nova versão de uma velha barbeiragem: para ilustrar uma matéria (aqui) inspirada em artigo científico, eis que alguém escolheu uma imagem absolutamente inapropriada.

Veja: para ilustrar uma matéria sobre baratas (insetos da ordem Blattodea), o jornal recorreu à imagem do que parece ser o fóssil de uma barata-d’água (insetos da ordem Hemiptera) (não foi a primeira vez; ver aqui). Trata-se de um erro grosseiro, equivalente a ilustrar uma matéria sobre elefantes com a imagem de um gorila, ou vice-versa.

CODA.

Mas talvez o problema esteja apenas na minha cabeça. Ou talvez eu esteja sendo excessivamente implicante, a ponto de não querer ver o óbvio: pouco importa quem ou o que está na foto. Afinal, as notícias não são mais o negócio da Folha, o negócio do jornal agora é outro.

Neste ponto, ouso dizer o seguinte: identificado o erro, a imagem sequer será trocada. Temo que os leitores terão de conviver com mais essa aberração.

Em tempo: o erro reportado aqui, ao contrário do que ocorre diariamente nas editorias de Economia e Política, não parece ter sido causado por cínica manipulação. Não, parece que foi apenas inépcia.

*

NOTA.

[*] Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos, por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os livros do autor, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

* * *

21 maio 2024

Da individualidade racional à irracionalidade social

Elmar Altvater

A externalização (por exemplo, as emissões de rejeitos gasosos, líquidos e sólidos na atmosfera, nas águas e no solo) é bastante comum nas sociedades de mercado, pois por essa via os agentes do mercado, sobretudo as empresas, evitam seus custos privados e podem transferi-los como custos sociais da sociedade como um todo. Assim, com palavras, poder-se-ia descrever uma situação que, no entanto, é bastante problemática. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que só muito raramente trata-se de alguma patifaria, de alguma estratégia consciente de eliminação secreta de custos. O ‘despejo da meia-noite’, o descarregamento noturno e ilegal de lixo tóxico, ou até mesmo o ‘despejo de velhos’, o abandono ilegal e desumano de doentes para economizar os custos que representam, são muito mais exceções do que regra. Um dos princípios da sociedade de economia privada e, portanto, individualista e que cada um precisa se ocupar de seus negócios, sem consideração com os negócios dos outros e, muito menos ainda sem respeitar especificamente aquilo que constitui um bem comum a todos os homens. Isto tem sido chamado de ‘tragédia dos bens públicos’(Hardin, 1968): o que pertence a todos, e, portanto, a ninguém, encontra-se excluído do enfoque do cálculo econômico privado. [...] A individualidade racional inverte-se em irracionalidade social e, por fim, em irracionalidade microeconômica. Não poderia ser maior a mudança de paradigma entre a confiança otimista burguesa inicial nos efeitos virtuosos (beneficentes) da concorrência e o conhecimento atual dos efeitos danosos (maleficientes) do múltiplo assalto privado a recursos naturais limitados.

Fonte: Altvater, E. 1995 [1992]. O preço da riqueza. SP, Editora Unesp.

19 maio 2024

Único e intrigante

Poh Pin Chin

A vida é um
presente único
e intrigante.

Não sabemos
quem nos deu
ou de onde veio.

Nem sabemos
quando ou como
o perderemos.

17 maio 2024

O que é um modelo?

Edward J. Kormondy & Daniel E. Brown

Um modelo é uma simplificação de algo real. Ele pode representar um objeto (como uma réplica plástica de um avião a jato), uma organização (como uma tabela de fluxo de posições em uma corporação) ou um processo, tanto conhecido quanto hipotético (como o fluxo energético em um ecossistema). Já que as populações humanas possuem um grande número de processos com-plexos, os estudiosos muitas vezes se utilizam de modelos heurísticos (que ajudam o entendimento mas que não são, necessariamente, ‘verdadeiros’) para reduzir a complexidade

Fonte: Kormondy, E. J. & Brown, D. E. 2002 [1999]. Ecologia humana. SP, Atheneu.

15 maio 2024

No atelier


Maxime [Pierre Jules] Dethomas (1867-1929). Portrait à l’atelier. ~1910.

Fonte da foto: Wikipedia.

13 maio 2024

Shell, Exxon, BP, Petrobras etc.: os maiores responsáveis pelo aquecimento global vão pagar pelos estragos?

Felipe A. P. L. Costa [*]

A opinião pública brasileira, como toda e qualquer opinião pública mundo afora, não navega em águas turbulentas – digo: não vai além das informações sensoriais e do senso comum (ver Ecologia sensorial e a mente humana).

Formadores de opinião, em especial aqueles que se veem como progressistas, já deveriam ter identificado corretamente a origem da desordem atmosférica ora em curso.

Estou a me referir aqui à velocidade com que a química atmosférica foi alterada ao longo dos últimos, digamos, 67 anos (ver RS debaixo d’água: O problema não está nas nuvens, está na anarquia dos mercados e na omissão dos governantes).

Do mesmo modo como a indústria do tabaco (ver Petróleo, picanha, cigarro ou cinema: O que de fato está a levar todos nós para o inferno?) sempre foi responsável pela elevação na incidência de câncer entre fumantes, os maiores responsáveis pelo aquecimento global são as petroleiras – grandes corporações que sugam, sujam e matam, tido Shell, Exxon, BP, Petrobras etc.

Sim, é fato que o agronegócio também tem um impacto negativo bastante significativo. Proporcionalmente, porém, é um impacto bem menor e, em geral, mais localizado. Por exemplo, a degradação ambiental que prospera hoje no Mato Grosso, no Paraná, no Rio Grande do Sul e em Goiás é liderada pelo agronegócio, em especial a cultura da soja (ver Desflorestamento: pausa para o lanche?). No entanto, os problemas ecológicos que caracterizam essas regiões (e.g., erosão e perda de solo, assoreamento de corpos d’água, envenenamento de córregos e rios e desperdício de água) têm um impacto principalmente local.

A força e a abrangência do impacto passam a ter uma relevância maior quando as atividades passam a interferir na composição ou no comportamento da atmosfera – e.g., por meio da emissão de gases-estufa. Esse é um dos motivos pelos quais a queima de combustíveis fósseis é mais preocupante. Há, porém, um fator adicional: a diferença da quantidade de sujeira injetada na atmosfera pelas duas atividades.

O total de CO2 emitido pelo uso da terra (e.g., desflorestamento e manutenção de grandes rebanhos) corresponde a pouco menos de um quinto do que é emitido pela queima de combustíveis fósseis, notadamente carvão (e.g., geração de eletricidade em países temperados) e petróleo (e.g., produção de gasolina, diesel e querosene para movimentar veículos rodoviários e aeronaves).

Essa balança mudou há quase um século. Até o início do século 20, atividades relacionadas ao uso da terra eram os maiores responsáveis pela emissão de carbono de origem antropogênica (C-Antro). A partir da década de 1920, no entanto, a balança começou a pender para o lado dos combustíveis fósseis.

Atualmente, as emissões mundiais de C-Antro correspondem a um valor anual médio de 10,8 Gt (1 Gt – lê-se gigatonelada – equivale a 1 bilhão ou 1 × 10^9 toneladas). Desse total, 1,2 Gt vem do uso da terra e 9,6 Gt vêm da queima de combustíveis fósseis.

O que significa dizer que para cada 1 t de C-Antro que é injetada na atmosfera pelo uso da terra, a queima de combustíveis fósseis injeta 8 t (ver Um balanço do ciclo global do carbono). Em percentuais, 83% do C-Antro são gerados pela queima de combustíveis fósseis, enquanto 17% são gerados pelo uso da terra.

Diante desses números, não parece exagero dizer que, além da indústria bélica, outro grande inimigo da humanidade são as petroleiras que operam mundo afora.

CODA.

Por que o governador do Rio Grande do Sul, em vez de tergiversar ou de saltitar por aí como um animador de auditório viciado em saquear o bolso dos telespectadores, não vai aos tribunais exigir uma reparação de danos por parte das corporações (Shell, Exxon, BP, Petrobras etc.) que estão a promover a desordem climática que ora enfrentamos?

*

NOTA.

[*] Este artigo contém material extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados – e.g., Livros, lentes & afins; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Quem quer ser um cientista?; Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Podemos aprender com os nossos erros; e Ciência, tecnologia, negócios. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

* * *

12 maio 2024

17 anos e sete meses no ar

F. Ponce de León

Neste domingo, 12/5, o Poesia Contra a Guerra está a completar 17 anos e sete meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘17 anos e meio no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: H. G. Wells, James Fenimore Cooper, Jean Baptiste de La Salle e Robert Foley. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Enrique Simonet e Ignacio Zuloaga.

10 maio 2024

Terrestrialidade e evolução humana

Robert Foley

O argumento de que a terrestrialidade é importante na evolução dos hominídeos é óbvio e autoevidente. E deriva de duas observações simples e básicas: uma, que a maioria dos primatas, em contraste com os humanos, é arborícola, e a outra, que entre os primatas que adotaram um modo de vida terrestre, os hominídeos desenvolveram uma das formas de locomoção mais extremas e especializadas – bipedismo. Esse grau de divergência em relação aos padrões evolutivos e adaptativos dos nossos parentes mais próximos parece ser uma explicação adequada para a singularidade humana.

Fonte: Foley, R. 1987. Another unique species. Londres, Longman.

08 maio 2024

RS debaixo d’água: O problema não está nas nuvens, está na anarquia dos mercados e na omissão dos governantes

Felipe A. P. L. Costa

APRESENTAÇÃO. – Nos últimos dias, a começar em 27/4, várias regiões do estado do Rio Grande do Sul foram assoladas por chuvas torrenciais. Em alguns municípios, a precipitação foi tão acima da média que o volume que caiu em 3-7 dias foi o equivalente ao esperado para um trimestre ou mesmo para um semestre inteiro. O quadro é desolador. Muita gente perdeu tudo. Boa parte dessa gente vai tentar reconstruir o que perdeu, mas muito o farão em outro bairro ou em outra cidade. O ritmo de crescimento da população gaúcha, entre os mais baixos do país, deverá cair ainda mais. O estado corre o risco de produzir a maior onda interna de refugiados do clima desde o início do século. A desorientação e as sucessivas trapalhadas do governo estadual são em boa medida fruto do desmanche dos serviços públicos. Em escala menor, o problema se reproduz em um sem número de municípios gaúchos. Meses atrás, o próprio prefeito de Porto Alegre estava a defender a derrubada do muro de contenção que hoje protege uma parte da cidade contra o avanço das águas do lago Guaíba (dito também rio). A ideia partiu de grupos empresariais que querem ocupar o terreno a troco de ‘modernizar’ o precário sistema de proteção que existe hoje (ver, e.g., aqui e aqui). A rigor, o RS é um dos estados mais atrasados na área ambiental. O problema vem de longe e envolve vários setores – e.g., caça de animais nativos, uso extensivo de agrotóxicos, destruição das áreas de preservação permanente, escassez de unidades de conservação e falta de proteção para hábitats-chave, a começar pelo campo limpo. A situação se agravou muito nos últimos anos. O atual governador, por exemplo, tudo fez para acabar com os últimos freios impostos pela legislação ambiental (e.g., aqui). A situação se tornou tão precária que hoje os próprios empreendedores estão autorizados a agir como licenciadores – algo do tipo eu mesmo me autorizo a provocar um incêndio ou a erguer uma edificação às margens de um rio. Uma gambiarra como essa não pode dar certo em lugar nenhum do planeta. A situação calamitosa enfrentada pelos gaúchos tem as 20 impressões digitais do governador. Diante de tudo isso, o sujeito agora se posta diante das câmaras para pedir doações financeiras aos brasileiros (aqui). Está a mimetizar o comportamento parasitário e oportunista de gente que vive a explorar a boa-fé alheia em redes sociais. Se não sabe o que fazer, a não ser despejar perdigotos em microfones e desfilar travestido de trabalhador salva-vidas, ele deveria renunciar ao cargo. O governador tem a voz empostada e, como é um dos queridinhos da impressa limpinha, ele agora bem que poderia sobreviver como galã de novelas. Ia tirar o emprego de alguns canastrões por aí, mas faria menos mal aos gaúchos.

[Para ler e/ou capturar o artigo completo, clique aqui.]

Piazza governo

Fernando Pinto do Amaral

Alguém tão parecido contigo. Porquê
sentar-me ali à espera que brilhasses
por interposta imagem? Não se sabe
onde começa exactamente um corpo. A água
irrompia, branquíssima de espuma,
e era ela a hipnotizar-me,
irreal e real
como a própria cidade a que chamaram
‘zona de guerra’ – ainda hoje lá estão
os três castelos entre ruas, praças
e essa mesma fonte: uma foca de pedra
acesa pela noite, olhando o céu,
as ingratas estrelas de setembro.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1993.

07 maio 2024

Do modo de escarrar

Jean Baptiste de La Salle

Você não deve abster-se de escarrar e é muito grosseiro engolir o que deve ser cuspido. Isso pode causar repugnância nos outros.

Ainda assim, não deve acostumar-se a escarrar demais e sem necessidade. Isso é não só grosseiro, mas enoja e aborrece as pessoas. Quando estiver na presença de pessoas bem-nascidas, e em lugares que são mantidos limpos, é educado escarrar dentro do lenço, ao mesmo tempo virando-se levemente para um lado.

É mesmo de boas maneiras para todos acostumarem-se a escarrar dentro do lenço quando estiverem nas casas dos grandes e em todos os lugares com pisos encerados ou de parquê. Mas é ainda mais necessário adquirir o hábito de assim proceder quando na igreja, tanto quanto possível... Acontece muitas vezes, porém, que nenhum chão de cozinha ou cocheira é mais sujo... do que o da igreja...

Depois de escarrar no lenço, você deve dobrá-lo imediatamente, sem olhar para ele, e colocá-lo no bolso. Deve tomar todo cuidado para nunca escarrar na própria roupa ou na de outra pessoa... Se notar escarro no chão, deve imediatamente pisá-lo com o pé. Se observá-lo no [casaco] de alguém, não é delicado dizer isso, mas dar ordens a um criado para limpá-lo. Se não houver um criado presente, você mesmo deve retirá-lo sem ser notado. Isto porque a boa educação consiste em não chamar a atenção da pessoa para qualquer coisa que possa ofendê-la ou confundi-la.

Fonte: Elias, N. 1990 [1939]. O processo civilizador. RJ, Jorge Zahar. Excerto de livro publicado em 1729.

05 maio 2024

A guerra dos mundos

H. G. Wells

Havia toda sorte de coisas que as pessoas estavam esquadrinhando e revivendo: coisas infernais, coisas estúpidas; coisas que não haviam sido tentadas em tempo algum; máquinas enormes, explosivos terríveis, canhões descomunais. Vocês conhecem a maneira absurda de agir desse tipo de pessoas engenhosas que fazem tais coisas: produzem-nas do mesmo modo como os castores constroem diques, sem qualquer preocupação quanto aos rios que irão desviar e quanto às terras que irão inundar!

Fonte: Ziman, J. 1981 [1976]. A força do conhecimento. BH, Itatiaia & Edusp. Excerto de livro originalmente publicado em 1898. H. G. Wells é a assinatura literária de Herbert George Wells (1866-1946).

02 maio 2024

Do homicídio ao omnicídio

Mario Bunge

Quase todos os códigos morais condenam o homicídio. Alguns deles, porém, assim como muitas religiões e ideologias políticas, admitem o homicídio legalizado, quer dizer, a pena de morte e as matanças perpetradas em nome da fé ou do ideário. Por exemplo, tanto cristãos como muçulmanos justificam a execução de hereges e as guerras santas. O Antigo Testamento, que condena Caim por ter assassinado o próprio irmão, relata com entusiasmo os genocídios de tribos inteiras que foram promovidos por Jeová em sua ira santa.

Por que condenar o assassinato no varejo e o justificar no atacado? Uma possível explicação dessa duplicidade moral é o tribalismo. Os membros de uma tribo devem evitar a violência dentro da tribo, de modo a assegurar a coesão interna. Ao contrário, as tribos estrangeiras são vistas como ameaças ou como inferiores e, em ambos os casos, como indignas de continuarem a existir. Em outros casos, a causa da violência massiva (ocupação, guerra, cruzada etc.) é a avidez por terras ou mercados, ou a competição pelo poder econômico, político ou cultural (em particular o ideológico). Estas e outras explicações podem estar corretas, mas não são justificativas morais.

Quem condena o homicídio simples deve condenar, com muito mais razão, o assassinato em massa. Qualquer que seja a escala, o assassinato é objetivamente mau, pois todos nós temos direito à vida (princípio moral) e por que, em larga escala, é mau negócio (princípio prático). De fato, a violência dificulta a convivência de grupos distintos, sobretudo no mundo de hoje, no qual todos os grupos sociais do mundo andam lado a lado. Além disso, abre lugar para a vingança, a qual debilita todas as partes envolvidas. (Veja-se a história da Máfia.)

Ainda que toda morte violenta seja condenável, é óbvio que o assassinato de N pessoas é N vezes pior que o de uma só pessoa. Por isso mesmo, a defesa da vida de N pessoas é N vezes mais valiosa que a de uma só. Ninguém tem direito de iniciar uma ação violenta, mas todos nós temos o dever de lutar por uma ordem social sem violência individual ou coletiva e, portanto, sem necessidade de defesa individual ou coletiva. Esta meta, antes utópica, se converteu hoje em uma necessidade imediata, dado o risco de extinção da espécie humana por meio da arte nuclear de matar.

Vale a pena relembrar os graus de homicídio, se quisermos atualizar as ideias a respeito dos pecados mortais. Esses graus são:

1. Assassinato de uma pessoa.
2. Matança, ou assassinato de um grupo social relativamente pouco numeroso.
3. Guerra, ou tentativa de assassinato indiscriminado de um grande número de pessoas.
4. Genocídio, ou extermínio de um grupo social numeroso e bem definido (raça, classe social ou partido político).
5. Omnicídio, ou assassinato da humanidade (ou mesmo de todos os seres vivos).

Fonte (em espanhol): Bunge, M. 1989. Mente y sociedad. Madri, Alianza.

eXTReMe Tracker