A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 abril 2008
O mal-estar da cultura
Konrad Lorenz
A alma é muitíssimo mais antiga do que o espírito humano. Não sabemos quando surgiu a alma, a sensação de uma vivência subjetiva. Qualquer pessoa que conheça os animais superiores sabe que a sua vivência, as suas “emoções” são fraternalmente aparentadas com as nossas. Um cão tem uma alma que de modo geral é igual à minha, e que provavelmente ainda a ultrapasse na capacidade de amar incondicionalmente; um espírito, conforme aqui o definimos, já não é característica própria de animal algum, nem dos cães nem tampouco dos antropóides mais proximamente aparentados aos homens. [...]
A camisa-de-força cultural e civilizatória, em que a humanidade se meteu, se estreita cada vez mais. Nem o nosso comportamento natural nem as “boas maneiras” que por tradição se tornaram a nossa segunda natureza são adequadas ao atual mundo ambiente, artificialmente construído e quase totalmente determinado pela tecnocracia. Creio que alguns jovens rebeldes confundem essas imposições diversas entre si, quando, protestando contra a sociedade do sucesso capitalista-tecnocrático, infringem as normas dos “bons modos”. Parece incompreensível para muitos desses jovens que a sua revolta contra a sociedade do sucesso tecnocrático teria muito melhores perspectivas de sucesso, caso não infringissem as normas dos “bons modos”, da dignidade humana e de tradições éticas e estéticas. Não percamos de vista, porém, que toda a rebelião da atual juventude demonstra, se bem que em parte irrefletida ou irracionalmente, o pressentimento de uma verdade: o espírito humano tornou-se, através dos caminhos percorridos pela tecnocracia, o antagonista da vida em si e, portanto, o antagonista da alma humana. [...] Fonte: Lorenz, K. 1986 [1983]. A demolição do homem. SP, Brasiliense.
Espelho, sub-reptício espelho, meu professor de disfarce. Quem poderá disfarçar-se sem recorrer ao seu conselho?
É diante dele que componho não só a gravata, meu enfeite, mas o meu jeito de rir, tristonho, para que o mundo me aceite.
Suspenso defronte à janela, falador, não obstante mudo, ele é o meu jornal tagarela que em segredo me conta tudo.
Graças ao seu préstimo avisto tudo o que se passa lá fora. E vejo, sem jamais ser visto, a vida que se vai embora...
Veja o amigo... (ah, eu o compreendo) o amigo que mais considero. Aquele que só é sincero por não saber que o estou vendo. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.
E aqui à sombra de meus dias apodreço na consumpção de ocultas corruptas brasas. No que queria e afinal não sou, feneço. Remotos, discordantes sons raspam a vidraça. Do sol raios não me descem ao fundo dos olhos; quebram-se na álgida refracção dos gelos em que mergulho. Brutais, ululantes, pavorosos sexos de mulher, hiantes, gritam translúcidas chamas no roxo manto dum Cristo de memória. Fantasmas de vivos – não gnomos, não duendes – sentam-se à minha beira como aparelhos de raios X. Pesado, lento, grosso, adocicado, nojento sangue escorre-me da sulfurosa boca. Na decomposição, total, completo, sou vivo. Amarga-me, não ela mas as consoladoras, desejáveis flores em que nunca rebentará. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1959.
Os estudiosos do câncer têm procurado entender a doença desde os primeiros tempos. A palavra câncer vem do grego karkinos, “caranguejo”, e exprime a tendência desse mal a ramificar-se pelos tecidos normais em várias direções. Assim também seu estudo – a oncologia – deriva do grego onkos, “massa”. O médico Galeno, cuja autoridade na matéria prevaleceu pelo menos até 1500 d. C., atribuía a moléstia ao excesso de bile negra, um dos quatro humores. Alguns de seus sucessores apontaram-lhe diversas origens: comportamento imoral, fornicação, depressão ou (no caso das freiras) celibato. Outros, notando a incidência de certos cânceres em determinadas famílias, aventaram a teoria de que se tratava de uma afecção hereditária. Aqui e ali, a partir de fins do século 18, vários observadores suspeitaram de que a causa residisse em venenos ambientais: a fuligem que atacava os limpadores de chaminés, o rapé e o tabaco que os cavalheiros inalavam, o pó das minas, os produtos químicos nos corantes da tintas. Mas no final do século 19, um divulgador honesto repetiria o que o célebre cirurgião da Filadélfia, Samuel Gross escrevera sobre o câncer havia uns cinqüenta anos: “Tudo o que sabemos com algum grau de certeza é que não sabemos nada”. [...] Fonte: Kevles, D. J. 1997. A busca do impopular: uma história de coragem, vírus e câncer. In Silvers, R. S., org. Histórias esquecidas da ciência, p. 61-91. RJ, Paz e Terra.
Este vento faz pensar no campo, meus amigos, Este vento vem de longe, vem do pampa e do céu.
Olá compadre, levanta a poeira em corrupios, Assobia e zune encanado na aba do chapéu.
Curvo, o chorão arrepia a grenha fofa, Giram na dança de roda as folhas mortas Chaminés botam fumaça horizontal ao sopro louro E a vaia fina fura a frincha das portas.
Olá compadre, mais alto, mais alto!
As ondas roxas do rio rolando a espuma Batem nas pedras da praia o tapa claro... Esfarrapadas, nuvens nuvens galopeiam No céu gelado, altura azul.
Este vento macho é um batismo de orgulho. Quando passa lava a cara, enfuna o peito, Varre a cidade onde eu nasci sobre a coxilha.
Não sou daqui, sou lá de fora... Ouço o meu grito gritar na voz do vento: – Mano Poeta, se enganche na minha garupa!
Comedor de horizontes, Meu compadre andarengo, entra!
Que bem me faz o teu galope de três dias Quando se atufa zunindo na noite gelada...
Ó mano Minuano Upa upa Na garupa!
Casuarinas cinamomos pinhais Largo lamento gemido imenso, vento! Minha infância tem a voz do vento virgem: Ele ventava sobre o rancho onde morei.
Todas as vozes numa voz, todas as dores numa dor, Todas as raivas na raiva do meu vento! Que bem me faz! mais alto, compadre! Derruba a casa! me leva junto! eu quero o longe! Não sou daqui, sou lá de fora, ouve o meu grito!
Eu sou o irmão das solidões sem sentido... Upa upa sobre o pampa e sobre o mar.... Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1929.
1. Presente sem presente, pedra negra na boca do céu. O eco do sangue e o eco do ecos como um único verso que caminha a cidade. Os passos, a memória, a volta do começo a parte alguma. O dia que amanhece, a noite que anoitece: as armadilhas do tempo. A chicotada da história e a tarde sem medida de verão coalhada de insetos. O Sol zumba como um besouro na caverna da palavra imensa.
2. Toda a noite com o rosto na sombra porque a palavra resiste a ser dita. Todas as palavras com a voz na sombra porque a vida resiste a ser dita.
3. O vazio que une o ar com a parede, o salto que as sílabas dão entre a boca e os dedos: pulgas na fervura da consciência! A palavra gafanhoto e a palavra pião, aquilo que se espera, a espera tenaz da vertigem. A língua e seu mar de fundo, a mão e sua noite, o fantasma e suas aparições. Isto que toco é distância pura.
4. Fastos nefastos a mirada circular da noite, o grasnido do eu na festa dos espelhos, as perseguições da memória inalcançável, a areia em rodamoinhos pelo ar açoitando a claridade do dia, desprumando-se depois de um instante nesta cicatriz do tempo. Volta a acre cerimônia do limite, a incineração do corpo e sua dispersão pela poeira de um dia sem memória. O desejo de invocar as cinco direções agrupando a voz do que é disperso: runa que percorre o corpo, palavra que procura uma certeza que não pese em nosso incerto espaço.
Poeta: conector de incêndios, atarefado e dissipado recolhedor de vogais de cinzas enlaçadas por mudas consoantes. O que ouves? O que dizem? Melhor que te amarrem ao mastro principal: nestas ilhas há vozes irreais e líricos comerciantes de sucata. Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1991.
1. Lok corria o mais depressa que podia. Com a cabeça baixa, usava uma das mãos para equilibrar-se, carregando horizontalmente seu bastão, feito de um ramo de espinheiro. Com a outra, afastava a vegetação que se colocava em seu caminho. Liku, em seus ombros, ria muito, com uma das mão agarrava-se aos cachos de cabelos castanhos de seu pescoço e de suas costas, e com a outra segura a pequena Oa, abrigada sob o seu queixo. Os pés de Lok eram ágeis, desviando-se das raízes expostas das faias, pulando quando alguma poça d’água atravessava o seu caminho. Liku batia com os pés em sua barriga:
– Mais depressa! Mais depressa!
Alguma coisa espetou os seus pés, fazendo com que se desviasse e afrouxasse o passo. Já podiam ouvir o rio que corria do lado esquerdo, embora escondido por entre as árvores. Mais alguns passos e as faias se abriram, os arbustos se dispersaram e eles chegaram ao pequeno charco de lama rasa, onde antes se encontrava o tronco. [...] Fonte: Golding, W. 1999 [1955]. Os herdeiros. SP, Nova Alexandria.
Ir-me-ei embora. E ficarão os pássaros Cantando. E ficará o meu jardim com sua árvore verde E o seu poço branco.
Todas as tardes o céu será azul e plácido, E tocarão, com esta tarde está tocando, Os sinos do campanário.
Morrerão os que me amaram E a aldeia se renovará todos os anos. E longe do bulício distinto, surdo, raro Do domingo acabado, Da diligência das cinco, das sestas do banho, No recanto secreto de meu jardim florido e caiado Meu espírito de hoje errará nostálgico...
E ir-me-ei embora, e serei outro, sem lar, sem árvore Verde, sem poço branco, Sem céu azul e plácido... E os pássaros ficarão cantando. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1911.
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmante puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem E as emoções, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa Do Éter nas róseas e áureas correntezas...
Cristais diluídos de clarões álacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte... Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1893.
Sou filha da charneca erma e selvagem: Os giestais, por entre os rosmaninhos, Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos, Desta minh’alma ardente são a imagem.
E ansiosa desejo – ó vã miragem – Que tu e eu, em beijos e carinhos, Eu a Charneca, e tu o Sol, sozinhos, Fôssemos um pedaço da paisagem!
E à noite, à hora doce da ansiedade, Ouviria da boca do luar O De Profundis triste da Saudade...
E, à tua espera, enquanto o mundo dorme, Ficaria, olhos quietos, a cismar... Esfinge olhando, na planície enorme... Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema originalmente publicado em 1923.
A mulher divide-se em gestos particulares o homem divide-se também. Se o átomo é divisível só poeta o diz.
A mulher divide-se em gestos extremos coloridos arenosos destilados.
Dois homens são duas divisões de uma casa que já foi um animal de costas para o seu polo mágico.
A divisibilidade da luz aclara os mistérios. A mulher tem filhos. Descobrem-se partículas soltas um dedo mínimo o peso menos pesado da balança um cabelo eloquente em desagregação.
Gestos estrídulos dividem a mulher o homem divide-a ainda. Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1966.
Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema paliçada os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida as senhoras católicas são piedosas os comunistas são piedosos os comerciantes são piedosos só eu não sou piedoso se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio bóia? por que prego afunda? eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes eu não sou piedoso eu nunca poderei ser piedoso meus olhos retinem e tingem-se de verde Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano. Poema originalmente publicado em 1963.
25. [...] As espécies podem ter um valor considerável como indicadores de uma mudança ambiental ampla e de longo alcance. Durante as décadas de 1950 e 1960, as populações de muitas aves predadoras e caçadoras de peixes nos Estados Unidos (especificamente o falcão-peregrino, a águia-americana, o gavião-pescador e o pelicano-marrom) declinaram drasticamente até o ponto em que várias dessas espécies tinham desaparecido totalmente de grandes áreas, o peregrino de todo o leste dos Estados Unidos. As causas dos declínios dessas populações foram rastreadas até a poluição de hábitats aquáticos pela decomposição de produtos de DDT (resíduos), um pesticida amplamente usado para grande benefício imediato após a II Guerra Mundial. Infelizmente, os resíduos do pesticida resistiram à degradação e entraram nas cadeias alimentares aquáticas, para se acumularem nos tecidos gordurosos dos animais e se concentrarem a cada passo da cadeia alimentar. As altas doses consumidas por aves predatórias interferiram na sua fisiologia e reprodução, fazendo que a cobertura da casca dos ovos afinassem, e daí a morte dos embriões [...]. O sucesso reprodutivo despencou e as populações acompanharam.
[...] O governo dos Estados Unidos respondeu banindo o DDT e os pesticidas relacionados, e as companhias químicas têm, desde então, criado alternativas com efeitos ambientais menos drásticos. [...] Infelizmente, essa capa brilhante chama a atenção para uma nuvem escura: a manufatura e a exportação de DDT para os países estrangeiros ainda é legal nos Estados Unidos, e permanece uma fonte de grande lucro para algumas companhias químicas. Fonte: Ricklefs, R. E. 2003. Economia da natureza, 5ª edição. RJ, Guanabara Koogan.
Neste sábado, 12/4, o Poesia contra a guerra completa um ano e meio no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 31.930 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Dezessete meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Adelaide Crapsey, António Barahona da Fonseca, Bocage, Carlos Nejar, Douglas J. Futuyma, Friedrich Hölderlin, Gastão Cruz, J. R. R. Tolkien, José Tolentino Mendonça, Lygia Bojunga, Manoel de Barros, Marly de Oliveira, Natalie Rogers, Roger Lewin, Rosana Rios, Sérgio de Castro Pinto e Woody Guthrie. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Angélico, Canaletto, Ferdinand Hodler, Gustave Courbet e Jasper Johns.
1. camões ao habitar-se no olho cego sentia-se íntimo, mais interno que o habitar-se no olho aberto.
2. lampião ao habitar-se nos dois olhos a eles dividia: o olho aberto matava e o outro se arrependia.
3. camões ao habitar-se no olho cego polia as palavras e usava-as absorto como se apalpasse e possuísse o próprio corpo.
4. lampião ao habitar-se no olho cego chorava os mortos do seu interno, mas o olho aberto era casto e via no matar um gesto beato.
5. camões ao habitar-se no olho aberto via-se todo ao inverso, (pelo lado de fora), mas rápido se devolvia e fechava o olho aberto pra ser total a miopia.
6. lampião ao habitar-se no olho murcho via o olho aberto estrábico e rústico e compreendia o olho aberto mais murcho que o olho cego.
7. camões ao habitar-se no olho murcho via o mundo claro dentro do escuro e o olho aberto era inútil ao habitar-se no olho murcho.
8. lampião atrás dos óculos sentia-se acrescido, somado e era mais lampião naqueles óculos de aro.
9. os óculos lhes eram binóculos íntimos sobre a miopia e quando os óculos tirava lampião se decrescia: o olho cego somava e o aberto diminuía.
10. camões molhava a pena como se no tinteiro molhasse o olho cego e tateando, cuidadoso saía do seu interno.
11. (no tinteiro as palavras em forma líquida juntam-se uma a uma à retina, à pupila.)
12. camões escrevia com o olho cego por senti-lo mais seu que o olho aberto e por poder o olho cego infiltrar-se, ir mais dentro e externar o seu inverso. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1970.
1. Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não agüento mais o meu. Vontade assim todo mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras – as três que de repente vão crescendo e engordando toda vida – ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum.
Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em vez de menina. Mas hoje to achando que é a vontade de escrever. [...] Fonte: Bonjunga, L. 2005 [1976]. A bolsa amarela, 33ª edição. RJ, Casa Lygia Bojunga.
1. Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
2. Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
3. Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.
4. No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite E um sapo engole as auroras.
5. Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
6. As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.
7. No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.
8. Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.
9. Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
10. Não tem altura o silêncio das pedras.
11. Adoecer de nós a Natureza: – Botar aflição nas pedras (Como fez Rodin).
12. Pegar no espaço contigüidades verbais é o mesmo que pegar mosca no hospício para dar banho nelas. Essa é uma prática sem dor. É como estar amanhecido a pássaros.
Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode modificar os seus gorjeios.
13. As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul – Que nem uma criança que você olha de ave.
14. Poesia é voar fora da asa.
15. Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de um primal deixe um termo erudito. Aplique na aridez intumescências. Encoste um cago ao sublime. E no solene um pênis sujo.
16. Entra um chamejamento de luxúria em mim: Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda a espessura de sua boca! Agora estou varado de entremências. (Sou pervertido pelas castidades? Santificado pelas imundícias?)
Há certas frases que se iluminam pelo opaco.
17. Em casa de caramujo até o sol encarde.
18. As coisas da terra lhe davam gala. Se batesse um azul no horizonte seu olho entoasse. Todos lhe ensinavam para inútil Aves faziam bosta nos seus cabelos.
19. O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.
20. Lembro um menino repetindo as tardes naquele quintal.
21. Ocupo muito de mim com o meu desconhecer. Sou um sujeito letrado em dicionários. Não tenho que 100 palavras. Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais ou no Viterbo – A fim de consertar a minha ignorãça, mas só acrescenta. Despesas para minha erudição tiro nos almanaques: – Ser ou não ser, eis a questão. Ou na porta dos cemitérios: – Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás. Ou no verso das folhinhas: – Conhece-te a ti mesmo. Ou na boca do povinho: – Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco. Etc. Etc. Etc.
Algumas conchas tornaram-se, que o sol da atenção cristalizou; alguma palavra que desabrochei, como a um pássaro.
Talvez alguma concha dessas (ou pássaro) lembre, côncava, o corpo do gesto extinto que o ar já preencheu;
talvez, como a camisa vazia, que despi.
2. Esta folha branca me proscreve o sonho, me incita ao verso nítido e preciso.
Eu me refugio nesta praia pura onde nada existe em que a noite pouse.
Como não há noite cessa toda fonte; como não há fonte cessa toda fuga;
como não há fuga nada lembra o fluir de meu tempo, ao vento que nele sopra o tempo.
3. Neste papel pode teu sal virar cinza;
pode o limão virar pedra; o sol da pele, o trigo do corpo virar cinza.
(Teme, por isso, a jovem manhã sobre as flores da véspera.)
Neste papel logo fenecem as roxas, mornas flores morais; todas as fluidas flores da pressa; todas as úmidas flores do sonho.
(Espera, por isso, que a jovem manhã te venha revelar as flores da véspera.)
4. O poema, com seus cavalos, quer explodir teu tempo claro; rompendo seu branco fio, seu cimento mudo e fresco.
(O descuido ficara aberto de par em par; um sonho passou, deixando fiapos, logo árvores instantâneas coagulando a preguiça.)
5. Vivo com certas palavras, abelhas domésticas.
Do dia aberto (branco guarda-sol) esses lúcidos fusos retiram o fio de mel (do dia que abriu também como flor)
que na noite (poço onde vai tombar a aérea flor) persistirá: louro sabor, e ácido contra o açúcar do podre.
6. Não a forma encontrada como uma concha, perdida nos frouxos areais como cabelos;
não a forma obtida em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro do invisível;
mas a forma atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola,
aranha; como o mais extremo desse fio frágil, que se rompe ao peso, sempre, das mãos enormes.
7. É mineral o papel onde escrever o verso; o verso que é possível não fazer.
São minerais as flores e as plantas, as frutas, os bichos quando em estado de palavra.
É mineral a linha do horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras.
É mineral, por fim, qualquer livro: que é mineral a palavra escrita, a fria natureza
da palavra escrita.
8. Cultivar o deserto como um pomar às avessas.
(A árvore destila a terra, gota a gota; a terra completa caiu, fruto!
Enquanto na ordem de outro pomar a atenção destila palavras maduras.)
Cultivar o deserto como um pomar às avessas:
então, nada mais destila; evapora; onde foi maçã resta uma fome;
onde foi palavra (potros ou touros contidos) resta a severa forma do vazio. Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1947. O autor dedica o poema a Antonio Rangel Bandeira, e a parte 2 a Lêdo Ivo.
Retomarás o canto o alvoroço das cítaras as encantações ténues ao atravessarmos os campos
Retomarás o honroso posto de observador no jardim do príncipe calcularás o vento pelo levantar do fogo o ouro dos frutos pelo desenho dos odores saberás o enunciado dos fenos a idade exacta das folhas os húmidos sinais que soletram a cor arriscarás adivinhações chegarás aos segredos guardados da arte das curas e do presságio
Então pronunciarás os nomes jubilosos Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1997.
Embora eu esteja cheia de idéias, não há planos. As decisões parecem acontecer antes que eu as assuma totalmente. Como uma decisão pode ser tomada sem que eu a elabore conscientemente? Quando revejo o que me levou a sair da Costa Leste para a Costa Oeste, verifico que foi uma combinação do meu lado masculino, lógico e linear, com o meu lado feminino, intuitivo e receptivo.
Eu havia passado o verão na Califórnia, trabalhando e me divertindo, desfrutando tanto dos odores, paisagens e sons quanto da informalidade e abertura das pessoas. Essas impressões provocaram em mim uma profunda emoção. Eu utilizada tanto o consciente quanto o inconsciente para adquirir informações.
Quando voltei para minha casa perto de Boston, me dei conta de que a decisão havia sido tomada. Uma macieira que crescia ao lado da casa ajudou-me a ver o curso que a minha vida tinha tomado. Eu a plantara uns anos antes. Suas raízes tinham se tornado profundas. Eu acompanhara seu crescimento de mudinha nova para árvore adulta, e suas folhas largas agora sombreavam o telhado. Eu possuía muitas raízes e ricas lembranças nesse lugar; ainda assim, eu precisava sair da sombra fria da minha vida anterior para a luz de uma vida nova. [...] Fonte: Rogers, N. 1987. A mulher emergente. SP, Martins Fontes.
Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava: Ah! cego eu cria, ah mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana:
De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não doirava! Mas eis sucumbe a Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua origem dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos, Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus... oh Deus! Quando a morte a luz me roube, Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema (póstumo) publicado em 1853.