31 julho 2008

O ferrão na cauda do pavão

Helena Cronin

Houve um tempo em que o olho, em sua aparente perfeição, dava arrepios de frio a Darwin. A cauda do pavão representou uma ameaça ainda maior à sua paz de espírito. “O espetáculo da plumagem da cauda do pavão, cada vez que eu a fito, me faz ficar doente!” [Charles Darwin] [...] Para um darwinista, essa esplêndida cauda possui um ferrão. O olho é, ao menos, altamente vantajoso; ninguém questionaria se ele é benéfico. Mas a cauda do pavão é uma extravagância – vistosa, estranha, exagerada, ornamental, aparentemente sem utilidade terrestre e na verdade prejudicial ao seu sobrecarregado portador. E pior, “caudas de pavão” existem em abundância em todo o reino animal. Em várias espécies, particularmente [aves] e insetos, as fêmeas são econômica e sensatamente vestidas, obedecendo aos preceitos darwinistas, ao passo que os machos desconsideram flagrantemente as regras, insultando a seleção natural, exibindo cores pomposas, ornamentação barroca ou canto elaborado e rotinas de dança. A pavoa poderia ter sido planejada por um engenheiro de senso prático e econômico quanto aos custos; seu parceiro poderia ter saído do cenário de um musical de Hollywood.
[...]

Fonte: Cronin, H. 1995. A formiga e o pavão. Campinas, Papirus.

30 julho 2008

Argila

Raul de Leoni

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila.
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema (referido às vezes como “Eufemismo” ou “Eugenia”) originalmente publicado em 1945.

29 julho 2008

Conjugação

António Maria Lisboa

A construção dos poemas é uma vela aberta ao meio e coberta de bolor
é a suspensão momentânea dum arrepio num dente fino
Como Uma Agulha

A construção dos poemas

A CONS
TRU
ÇÃO DOS
POEMAS

é como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul
é como amar formigas brancas obsessivamente junto ao peito
olhar uma paisagem em frente e ver um abismo
ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente

NUM TÚMULO EXAUSTIVO.

Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema (“Para o A. Cruzeiro Seixas”) originalmente publicado em 1952.

28 julho 2008

Em busca da pedra filosofal


Joseph Wright of Derby (1734-1797). The alchemist in search of the philosopher’s stone. 1771.

Fonte da foto: Wikipedia.

26 julho 2008

Paisagem e memória

Simon Schama

Só quando passei para a escola secundária percebi que não devia gostar de Rudyard Kipling. Foi um choque. Não que eu me importasse muito com Kim e Mowgli. Já Puck of Pook’s hill [O diabrete do monte Pook] era outra história – na verdade, minha história favorita, desde que ganhei o livro ao completar oito anos de idade. Para um menino com a cabeça no passado, a fantasia de Kipling era poderosamente mágica. Evidentemente, havia na Inglaterra certos lugares nos quais pessoas, que ali estiveram séculos atrás, de repente se materializavam, de modo inexplicável, diante de uma criança (neste caso, Dan ou Una). Com a ajuda do diabrete podia-se viajar através do tempo sem sair do lugar. No monte Pook, os felizardos Dan e Una conversaram com guerreiros vikings, centuriões romanos, cavaleiros normandos e, depois, foram para casa tomar chá.

Eu não dispunha de nenhum monte, porém tinha o Tâmisa. Não era o rio a montante que, segundo os poetas de minha antologia Palgrave, borbulhava por entre margens cobertas de musgo. Tampouco era a larga estrada verde-oliva que divide Londres. Eu tinha o estuário baixo, visitado pelas gaivotas, o leito nupcial de sal e água doce, estendendo-se até onde conseguia avistá-lo, de minha margem no Norte de Essex, e dirigindo-se para um estreito horizonte negro no outro lado. Lá estava Kent, o sinistro inimigo que sempre nos derrotava no campeonato de críquete. Na maior parte dos dias, o vento nos trazia uma lufada de aromas, mensagens olfativas da cidade e do mar: tráfego intenso e peixe fresco. E, entre elas, o cheiro do próprio velho: penetrante e rançoso, como se o exalasse um vasto fungo sufluvial existente no lodo primevo.
[...]

Fonte: Schama, S. 1996. Paisagem e memória. SP, Companhia das Letras.

24 julho 2008

Primeira elegia

Arturo Torres Rioseco

Ai como me deixaste
Tão cheio de incerteza e de cuidado!
Quando me abandonaste
Andava eu, coitado,
Como se o mundo fora verde prado.

Embriagado no gozo
Da juventude andei pelas campinas;
O mundo generoso
Ofertava-me as finas
Uvas, rios e bocas de meninas.

Os mansos animais
– Os animais de Deus, – iam comigo,
Eram todos iguais
Naquele suave abrigo,
Todos, e o abutre era da pomba amigo.

No meu contentamento
Eu ia nas manhãs nu de pecado,
Ia puro no vento,
E no fogo sagrado
Do sol levava o corpo levantado.

Em plena luz te via,
Na luz e no ar aberto te buscava;
Eras toda alegria,
e quando eu só ficava,
Parecia que o mundo se acabava.

Ai que de ti afastado,
Era a noite, era a terra, era a tormenta,
O círculo fechado,
Era o mundo em que venta
A noite de Valpúrgis turbulenta!

Distanciada a essência,
O perfume suavíssimo da rosa,
Ah a inefável ardência
De uma formosura, a milagrosa
Vista que junto a ti minh’alma goza.

Com tua formosura
Simples, zonas inteiras acendias,
Influías doçura
Nos olhos das bravias
Feras e os prados de verdor enchias.

Eu contemplava a vida
Feita rosa no vale do teu peito,
Contemplava-a incendida
No inexprimível jeito
De teus braços e pernas sem defeito.

Eu gozava-a desperto
No ovo auroral dos joelhos, ó candura!
Em completo concerto,
Na consonância pura
De sol fecundador e semeadura.

Gozava-a no teu beijo,
Nos lábios de salivas redolentes,
Na língua, onde o desejo
Punha cravos ardentes,
E na umidade agreste dos teus dentes.

Gozava-a na quentura
Da tua pele em sua flor primeira,
E na grata frescura
De florida ladeira
Que vai de uma cadeira a outra cadeira.

Da humana companhia,
Do bulício do mundo eu me afastava,
E assim me recolhia
E morrer me deixava
No teu olhar, a alma rendida e escrava.

Teu olhar de prodígios
A iluminar-me numa luz tão pura,
Que apagava os vestígios
Da entranhada amargura
Na paz da tua angélica ternura.

Ternura de ovelhinha,
Ternura material e luminosa,
Branda queixa que vinha
Numa aura fervorosa,
Como o esvaecimento de uma rosa.

Tudo isso era o meu mundo,
Meu mundo em ti, sem quem já não existe,
Um abismo profundo
Desde que me fugiste,
Mundo que só de sombra hoje consiste.

Solidão pavorosa,
Povoada das espécies mais estranhas,
Na frialdade odiosa
Deslizam as aranhas,
Lutam répteis... Mundo de pena e sanhas!

Aqui meu ser desfaz-se
Em asquerosa morte sepultado.
O cordeiro que pasce,
Ao ver meu triste estado
Sola ao vento o balido desolado.

Minh’alma prisioneira
É falena de luz em cova escura;
A doce companheira,
Cheia de compostura,
Não pode compreender-lhe a desventura.

Tu dormes em teu leito,
Em teu leito de sedas e de plumas;
Tu trazes sobre o peito
Com que os lençóis perfumas,
O jasmim que se banha nas espumas.

Segues despreocupada,
Não sentes minha dor da tua ausência.
À brisa perfumada
Cedes a tua essência,
E ela a vai distribuindo em consciência.

Eu vou por entre a gente,
Pelas cidades cheias de pecado,
Em um ritmo dolente
De homem desamparado,
Em profunda tristeza mergulhado.

Vou sem rumo e sem ânsias
À toa em becos ermos e vulgares,
Por lúgubres estâncias,
Por frios bulevares,
Pela agonia cínica dos bares.

Ai miséria infinita
De te saber estranha à minha sorte,
De não ter na desdita
Nada que me conforte
Senão pensar na paz final da morte!

Ela que sempre mora
Junto ao triste que chora o bem perdido,
Com ela vou agora,
Longe de todo ruído,
Olvidado de tudo para o olvido.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1947.

23 julho 2008

Há uma rosa caída

Maria Ângela Alvim

Há uma rosa caída
Morta
Há uma rosa caída
Bela
Há uma rosa caída
Rosa

Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1950.

22 julho 2008

Vertigem

Henriqueta Lisboa

A roda gira
o mundo gira
gira a cabeça
mais que o girassol.
Em derredor de algo ou de alguém
que talvez gire em volta de outrem
ou de outra cousa mariposa
sobre si mesma.

Nem sabe a espiga porque giram
as asas ríspidas do moinho.
Hoje é o esteio que se abate
de chofre contra o duro solo
enquanto o grão de areia sobe
em vertical pela argamassa.
O oceano cala nos pélagos
e joga as ondas em vaivém.
Pela vesânia a mesa farta
pela vindícia a mesa parca
aos impulsos do pêndulo.
Essa girândola que pende
para a direita ou para a esquerda
não edifica em centro.
Daqui de lá dos quatro cantos
das montanhas ao vale
são reflexos que refractam
não os deuses mas os mitos.
É o provisório o aleatório
o que ainda pouco se diluíra
na miragem dos plainos.
Para voltar com novo embalo
ao velho torno da aflição.

Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1973.

21 julho 2008

Dando graças


Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779). Le Bénédicité. 1740.

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

20 julho 2008

O passarinho e o espantalho

Marciano Vasques

Quando se aninha
num coração de palha
um passarinho,
o seu canto se espalha aquecido,
e o espantalho,
com a alma repleta de vôos,
desperta querendo gorjear.

Espigas o saúdam.
Amarelos brincam ao redor
do seu vulto esfarrapado.

Campos acordam em festa
com o orvalho anunciando
que o dia está sorrindo.

Quando o Sol se espreguiça
e o passarinho vai embora,
o espantalho se entristece com o ninho vazio
no peito, mas o dia gorjeia em seu lugar.

Fonte: edição No. 189 (abril de 2007) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema originalmente publicado em 2004.

19 julho 2008

Estrada do Sol

Dolores Duran

É de manhã, vem o sol
Mas os pingos da chuva que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre que me traz esta canção

Quero que você me dê a mão
Vamos sair por aí
Sem pensar no que foi que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nossa manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol

Fonte: álbum Ela (1971), de Elis Regina. Canção originalmente gravada em 1958.

18 julho 2008

A falsa medida do homem

Stephen Jay Gould

Os cidadãos da República, aconselhava Sócrates, deveriam ser educados e depois classificados, de acordo com o seu mérito, em três classes: governantes, auxiliares e artesãos. Uma sociedade estável exige que essa divisão seja respeitada e que os cidadãos aceitem a condição social que lhes é conferida. Mas como é possível assegurar essa aceitação? Sócrates, incapaz de elaborar um argumento lógico, forja um mito. Com um certo constrangimento, ele diz a Glauco:

Falarei, embora realmente não saiba como te olhar diretamente nos olhos, ou com que palavras expressar a audaz ficção... Deve-se dizer a eles [os cidadãos] que a sua juventude foi um sonho, e que a educação e o treinamento que de nós receberam foi apenas uma aparência; na realidade, durante todo aquele tempo, eles estavam se formando e nutrindo no seio da terra...

Glauco, surpreso, exclama: “Tinhas boa razão para te envergonhares da mentira que ías contar.” “É verdade”, responde Sócrates, “mas ainda há mais; só te contei a metade.”

Cidadãos, dir-lhes-emos em nossa história, sois todos irmãos, mas Deus vos deu formas diferentes. Alguns de vós possuís a capacidade de comando e em vossa composição entrou o ouro, e por isso sois os merecedores das maiores honras; outros foram feitos de prata para serem auxiliares; outros, finalmente, Deus os fez de latão e ferro para que fossem lavradores e artesãos; e as espécies em geral serão perpetuadas através de seus filhos... Um oráculo diz que, quando um homem de latão ou ferro recebe a custódia do Estado, este será destruído. Esta é a minha fábula; haverá alguma possibilidade de fazer com que nossos cidadãos acreditem nela?

Glauco responde: “Não na atual geração; não existe maneira de se consegui-lo; mas é possível fazer com que seus filhos creiam nela, e os filhos de seus filhos, e, depois deles, a sua descendência.”

Fonte: Gould, S. J. 1991 [1981]. A falsa medida do homem. SP, Martins Fontes.

17 julho 2008

Cogito

Torquato Neto

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano. Poema originalmente publicado em 1973.

16 julho 2008

Crânio


Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Untitled (Skull). 1981.

Fonte da foto: Wikipedia.

15 julho 2008

Raça e racismo

Luca Cavalli-Sforza & Francesco Cavalli-Sforza

[...]
No mapa geográfico, a França parece um quadrilátero. Cada um dos seus quatro vértices é genética e historicamente diferente.

O ângulo norte-ocidental (à esquerda, no alto) é a Bretanha; como o próprio nome sugere, grande parte de seus habitantes provém da Grã-Bretanha. Mesmo atualmente, os bretões falam uma língua celta; trata-se no entanto de um fenômeno secundário, por assim dizer, porque quando os anglo-saxões conquistaram a Inglaterra depois da queda do Império Romano muitos bretões fugiram para a chamada Bretanha, trazendo a língua celta com eles e dando nome à região.

O ângulo norte-oriental, próximo à Bélgica atual, é geneticamente mais próximo da Europa Central por várias razões históricas. Uma das mais antigas é a migração dos cultivadores neolíticos ao longo dos rios das planícies da Europa Central e de lá em direção à França. [...] Em tempo mais recentes, nos séculos V a VII depois de Cristo, tribos germânicas da região de Colônia, na Alemanha, atravessam a Holanda e a Bélgica atuais e estabeleceram-se ao norte de Paris. Eram os francos: eles deram o nome à região mas não à língua, que manteve suas origens latinas.

A procedência dos povos do sul da França é muito diferente. O sul divide-se em pelo menos duas zonas principais: a oriental, região de Marselha, colonizada pelos gregos e que ainda mantêm parte de suas características genéticas, e a extremo-ocidental, onde ainda se fala o basco graças a um núcleo, cada vez menor, que resiste à propaganda do governo central em favor da língua francesa.
[...]

Fonte: Cavalli-Sforza, L. & Cavalli-Sforza, F. 2002. Quem somos? SP, Editora da Unesp.

14 julho 2008

Girassol da madrugada

Mário de Andrade

1.
De uma cantante alegria onde riem-se as alvas uiaras
Te olho como se deve olhar, contemplação,
E a lâmina que a luz tauxia de indolências
É toda um esplendor de ti, riso escolhido no céu.

Assim. Que jamais um pudor te humanize. É feliz
Deixar que o meu olhar te conceda o que é teu,
Carne que é flor de girassol! sombra de anil!
Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril
Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.

2.
Diga aos menos que nem você quer mais desses gestos traiçoeiros
Em que o amor se compõe feito uma luta;
Isso trará mais paz, por quanto o caminho foi longo,
Abrindo o nosso passo através dos espelhos maduros.

Você não diz porém o vosso corpo está delindo no ar,
Você apenas esconde os olhos no meu braço e encontra a paz na escuridão.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados,
Enquanto o nosso par aguarda, soleníssimo,
Radiando luz, nesse esplendor dos que não sabem mais pra onde ir.

3.
Si o teu perfil é purríssimo, si os teus lábios
São crianças que se esvaecem no leite,
Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:

Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e me acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.

4.
Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia não seremos nada e a ambições convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da poeira
Em que o sol chapeará torvelins uniformes.

E voltarei sempre de-noite às tuas carícias,
E serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis
Porque a Divinidade muito naturalmente virá.
Agressiva Ela virá sentar em nosso teto,
E seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,
De-noite, sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor.

5.
Teu dedo curioso me segue lento no rosto
Os sulcos, as sombras machucadas por onde a vida passou.
Que silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,
Que círculos vagarosos na lagoa em que uma asa gratuita roçou...

Tive quatro amores eternos...
O primeiro era uma donzela,
O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados.

6.
Os trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas cidades,
Não há senão Narciso entre nós dois, lagoa
Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras,
Há só meu êxtase pousando devagar sobre você.

Oh que pureza sem impaciência nos calma
Numa fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se agradam,
Impossíveis que nem a morte e os bons princípios.

Que silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso dourado!
Nem beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia apaixonada
Em que a paz interior brinca de ser tristeza.

7.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados
Num vago rumor confuso de mar e asas espalmadas,
Eu, debruçado sobre vossa perfeição, num cessar ardentíssimo,
Agora pouso, agora vou beber vosso olhar estagnado, oh minha lagoa!

Eis que ciumenta noção de tempo, tropeçando em maracás,
Assusta guarás, colhereiras e briga com os arlequins,
Vem chegando a manhã. Porém, mais compacta que a morte,
Para nós é a sonolenta noite que nasce detrás das carícias esparsas.

Flor! Flor!...

Graça dourada!...

Flor...

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1922.

13 julho 2008

Dirty Blvd.

Lou Reed

Pedro lives out of the Wilshire Hotel
He looks out a window without glass
The walls are made of cardboard
newspapers on his feet
His father beats him ’cause he’s too tired to beg

He’s got 9 brothers and sisters
They’re brought up on their knees
It’s hard to run when a coat hanger beats you on the thighs
Pedro dreams of being older and killing the old man
but that’s a slim chance he’s going to the boulevard

This room cost 2,000 dollars a month
you can believe it man it’s true
Somewhere a landlord’s laughing till he wets his pants
No one here dreams of being a doctor or a lawyer or anything
they dream of dealing on the dirty boulevard

Give me your hungry your tired your poor I’ll piss on ’em
That’s what the Statue of Bigotry says
Your poor huddled masses, let’s club ’em to death
and get it over with and just dump ’em on the boulevard

Outside it’s a bright night, there’s an opera at Lincoln Center
Movie stars arrive by limousine
The klieg lights shoot up over the skyline of Manhattan
But the lights are out on the mean streets

A small kid stands by the Lincoln Tunnel
He’s selling plastic roses for a buck
The traffic’s backed up to 39th street
The TV Whores are calling the Cops out for a Suck

And back at the Wilshire, Pedro sits there dreaming
He’s found a book on Magic in a garbage can
He looks at the pictures and stares at the cracked ceiling
“At the count of 3,” he says, “I hope I can disappear”
And fly fly away…

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum New York (1989), de Lou Reed.

12 julho 2008

Vinte e um meses no ar

F. Ponce de León

Neste sábado, 12/7, o Poesia contra a guerra completa um ano e nove meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 41.483 visitas haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior – Vinte meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Ana Hatherly, Auguste de Saint-Hilaire, Domitila Barrios de Chungara, Dom Dinis, Elizabeth Barrett Browning, Gabriel García Márquez, Jane Goodall, Joaquim Cardozo, Manuel Ulacia, Marcia Lee Anderson, Maria Teresa Horta, Mauro Mota e Nicanor Miranda. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Adriaen van Utrecht, Jan Steen, Josefa de Óbidos, Judith Leyster e Max Ernst.

11 julho 2008

Corrida de três pernas

Nicanor Miranda

Preparação:
Traça-se a linha de partida e, a vinte metros desta, a linha de chegada. Na linha de partida, juntam-se dois meninos ou duas meninas, amarrando-se a perna direita de um e a perna esquerda de outro, à altura dos tornozelos [...].

Evolução:
Dado o sinal de partida, saem correndo a fim de atingir a linha de chegada.

Final:
Será considerado vencedor o par que chegar à linha final em primeiro lugar.

Fonte: Miranda, N. 1980 [1947]. 200 jogos infantis, 7ª edição. BH, Itatiaia.

10 julho 2008

Festa de São Nicolau


Jan Steen (1626-1679). Het Sint Nicolaasfeest. 1665-8.

Fonte da foto: Rijksmuseum Amsterdam.

08 julho 2008

O naufrágio do Deutschland

Gerard Manley Hopkins

À feliz memória de cinco freiras franciscanas exiladas pelas Leis Falck, mortas em naufrágio, entre a meia-noite e a manhã de 7 de dezembro de 1875.

Primeira Parte

1.
Tu que me dominas,
Deus doador de hálito e alimento,
Amarra do mundo, controle do mar,
Senhor dos vivos e dos mortos;
Tu me ligaste ossos e veias e me colaste a carne
E após, quase desfizeste, quem sabe, por medo,
O teu feito: e ora pões-te de novo a tocar-me?
Mais uma vez te encontro, sinto o teu dedo.

2.
Sim, eu disse sim
Ah! ao raio e à vara do açoite,
E tu me ouviste, mais vero que a palavra, confessar
Teu terror, Ó Cristo, Ó Deus;
Tu conheceste os muros, a hora, o altar, a noite;
O desfalecer de um coração que tua brusca arremetida tão duramente
Espezinhou, com tal horror de altura:
O diafragma torcido ao vergar-se, num fogo de tensão premente.

3.
A ira de tua face
Diante de mim, o crepitar do inferno
Atrás de mim, onde, onde achar, onde um refúgio?
Asas desfraldei naquele transe
E num arranco do coração fugi para o coração da Hóstia.
Coração meu, ouso dizer que era de pombo a tua asa.
Sagaz pombo-correio (chega a tal a minha vanglória),
Para chispar assim de chama a chama, subir da graça à graça.

4.
Sou areia a cirandar
Em uma ampulheta – rente às paredes,
Mas por dentro minada por um movimento, uma corrente,
Que se adensa e escoa até o fim.
Eu quedo como água num poço, imóvel, placa de vidro,
Mas recebendo os filetes todo o tempo caindo da crista,
Pelas encostas e vertentes do monte – filões
Da proposta do Evangelho, uma pressão, um princípio, um dom de Cristo.

5.
Atiro um beijo
Às estrelas, adorável dispersão
De luz-de-estrelas, em lufada levando-O, e
Incandesço, glorio-me no trovão;
Atiro um beijo ao poente, mosqueado em cor-de-ameixa;
Pois, embora Ele no mundo se oculte sob o fulgor, o deslumbramento
Seu mistério tem de ser apreendido, enfatizado;
Saúdo-O, então, nos dias em que O encontro, rendo graças quando compreendo.

6.
Não de sua bem-aventurança
Provém o impacto que sofremos
Nem primeiro do Céu (poucos o sabem)
Pende o golpe que recebemos –
Golpe e impacto que as estrelas e as tormentas transmitem –
Pelo que a culpa é atenuada, os corações inflamados se enternecem
Mas isso atravessa o tempo, como se singra um rio
(E aí os fiéis vacilam, e os sem-fé fabulam e se perdem).

7.
Isso data do dia
Da ida d’Ele à Galiléia.
Cálido túmulo de escura vida-útero;
Manjedoura; colo de virgem;
A densa, compelida Paixão, o suor do horror –
Donde se desencadeia isso tudo, inda sempre a expandir-se,
Embora já antes pressentido, embora ainda em maré-cheia –
O que ninguém perceberia, somente um coração acuado, a consumir-se

8.
O desabafa! Oh!
Num jato, com a melhor ou a pior
Das palavras! Como a ameixa túmida-de-suco, casca-de-veludo,
Abocada, apertada contra o palato,
Arrebenta, tinge de rubro o homem, o seu ser, e, amarga ou doce,
Transborda num jorro! – Para isso, cedo ou tarde, então
Para o herói do Calvário, para os pés de Cristo –
Nunca perguntes se pretendendo, ou querendo, ou sabendo – os homens vão.

9.
Seja entre os homens adorado,
Deus, de tríplice forma;
Força o teu rebelde, em covil acossado,
Malícia humana, com naufrágio e tormenta.
Impossível exprimir quão doce, a língua não o pode expressar –
Tu és relâmpago e amor, eu descobri, inverno e verão,
Pai e carícia do coração que torturaste:
Tens descidas tenebrosas, e então é quando és todo compaixão.

10.
Com golpes na bigorna,
Ou em fornalha, molda-o à Tua vontade,
Ou melhor, melhor então, vem sorrateiro, qual Primavera
Penetrando-o, dissolvendo, mas domina-o deveras:
Quer seja súbito, num choque, como a Paulo, uma vez,
Ou como a Agostinho, em ternas artimanhas prolongado,
Usa Tua misericórdia em nós, mas por fora,
Domina-nos a todos, conquanto sejas adorado, sejas Rei adorado.

Segunda Parte

11.
“Uns sente-me uma espada; outros,
Flanges e trilhos; labaredas;
Presas de fera; dilúvios” – vai a Morte rufando,
E tempestades, sua fama trombeteando.
Mas nós nos sonhamos enraizados na terra – Pó!
A carne tomba à nossa vista; mas – flores a balouçar
No campo
nós nos esquecemos que, sem dó,
A ácida foice nos vai ceifar; a vista nos vai vidrar.

12.
No sábado partiram de Bremen
Com destino a plagas da América;
Entre marujos, colonizadores, mulheres, homens,
Cerca de duzentas almas –
Ó Pai, não sob tuas asas, pois jamais eles pressentem
Seu fim ali no baixio e, para muitos, o destino de afogados;
Contudo, o lado sombrio do arco de Tua bênção
Não os cobriu, as voltas mil de Tua mercê não os colheu enlaçados?

13.
Na nevasca o navio desliza,
O porto atirando para trás,
O Deutschland, no domingo; um céu falaz,
Pois não está nada propício o ar infinito.
É o oceano grosso de areia, negro dorso, na rajada regular
Do Nordeste soprando, vento em quadrante maldito;
Alva-áspera-feroz, a neve-que-o-furacão-faz-girar
Parafusa o mar, e ele faz viúvas, órfãos, pais-sem-filhos.

14.
Na treva, avançava contra o vento
E bateu – não em recife ou rocha –
Mas na crista de um amontoado de areia; a noite puxou-o
Morto para Kentish Knock;
E ele devastou o baixio com a proa e o arrastar da quilha:
Rolaram vagalhões sobre as traves e sua fúria as destroçou,
E velame, bússola, hélice e leme,
P’ra sempre inúteis para impeli-lo, guiá-lo – por isso tudo ele passou.

15.
A esperança já encanecia,
A esperança se cobria de luto;
Sulcada de lágrimas, esculpida em agonia,
Já doze horas antes se extinguira;
E, medonha, a noite envolveu desventurado dia
Sem socorro, só brilhavam foguetes e faróis de barco,
Enquanto as vidas iam sendo tragadas pelas águas:
Eles subiam pelas enxárcias, sacudidos aos arrancos do ar conflagrado.

16.
Um moveu-me no cordame, quer salvar
As desvairadas mulheres lá embaixo
Por uma corda amarrado, prestativo e bravo –
Mas de chofre arremessado à morte –
Inúteis seus músculos másculos, seu ânimo forte:
Os outros, por horas, contaram seu ir-e-vir nos rompantes
De espumarado pedregulho; como podia lutar
Contra o ar espocando aos borbotões, o corcovear das vagas inundantes?

17.
Lutaram contra o frio de Deus –
Não agüentaram e tombaram no convés
(Que os amassou), ou na água (que os afogou), ou rolaram
Aos galopes do mar, sobre os destroços.
Rugia a noite, partido coração ouvindo os corações partidos,
Choro de crianças, mulheres que em lamúrias se afligem,
Até que ergueu-se uma leoa, enfrentando os gemidos,
Ergueu-se uma profetisa, e no tumulto ressoou uma voz de virgem.

18.
Ah! tocado na arca de teus ossos,
Pois não? vergando à dura aflição,
Não estás? dá-me palavra, a mim, a sós,
Dá-me, mãe-de-meu-ser, meu coração.
Incorrigível no encalço do mal, mas gritando a verdade –
Ah! lágrimas? Sim, lágrimas – prelúdio de madrigal, tal emoção?
Arroubo, torrente da mocidade, que a idade
Não estanca? – o que de bom ainda guardas é a causa de tanta exaltação?

19.
Irmã, uma irmã chamava
Um mestre – seu mestre e meu! –
E, a bordo, o mar em remoinhos arrastava;
O oceano, em rudes ímpetos golpeando,
Cegava-a, mas só uma coisa ela vê no temporal – uma só;
Descobre em si uma inspiração: e o brado da esguia monja
Aos homens no tope, na cordoalha, subiu acima do fragor da tormenta.

20.
Era a primeira de cinco freiras
De brancas coifas numa irmandade,
(Ó Deutschland, duplo acinte ao nome teu!
Ó distância do que em ti é bondade!
Mas Gertrude, lírio, e Lutero são da mesma cidade,
O lírio de Cristo e a besta da devastada silva:
Desde a aurora da vida isso já teve ensejo –
Abel é irmão de Caim, ambos sugaram o mesmo seio.)

21.
Odiadas pelo amor que revelaram,
Banidas da terra em que nasceram,
O Reno as recusou; o Tâmisa as arruinou;
Arrebentação, neve, rios, terras
Rosnaram; mas tu pairas acima deles, Orion de luz;
Tuas palmas inabaláveis, imóveis, sopesavam o valor,
Tu, mestre dos mártires; aos olhos Teus
As bátegas eram flores em volutas, chuva de lírios – através deles, o Céu e seu dulçor.

22.
Cinco; a divisa e o signo
E a cifra das chagas de Cristo.
Marca: a marca é obra de homem
E o nome dela, Sacrificado.
Mas ele mesmo a estampa em escarlate em seu predestinado,
Desde todos os tempos, o mais prezado, o mais precioso –
Estigma, sinal, emblema pentafolhado
A rotular o velo do cordeiro, a enrubescer as pétalas da rosa.

23.
Alegra-te, Pai Francisco,
Fascinado pela Vida que morreu,
Cravos em ti cravados, nicho de lança, Seu
Espelho-de-amor, crucificado,
E o selo de Sua vinda-em-Serafim! e estas tuas filhas,
Estas cinco pétalas vivas de teu orgulho e teu favor,
Irmamente seladas em águas bravias,
Para banhar-se na chuva-d’ouro de Suas mercês, haurir de Seu olhar abrasador.

24.
Longe, no amorável Oeste,
Num promontório de Gales, pastoral,
Aqui eu estava descansado sob um teto,
E elas, presas do temporal;
Ela, para o ar enegrecido ao redor, a espessa
Chuva-de-flocos, para a turba que se agarrava e se encolhia na dor,
Clamava, “Ó Cristo! Cristo vem depressa!”
A sua cruz que lhe cabe, chama-a Cristo, batiza o seu pior como o Melhor.

25.
A majestade! que quereria ela dizer?
Sopra, arqui-Sopro original.
Desejo de ser tal como fora o seu amado?
Inspira-me, corpo da Morte divinal.
Eles pensavam em outras coisas, todos eles, os homens,
Que Te acordaram com “eis que perecemos”, em Genezaré, na tempestade.
Ou será que ela clamava então pela coroa –
Aguçada sua pressa de chegar ao conforto, sentindo agudo o combate?

26.
Como ao encorajar-se do coração
O cinza, baixas-tetas-roçando-o-chão,
Evola-se, e abrem-se os céus azul-gaio
Do matizado e do macio-maio!
Altura pulsando azul, fulgindo prata; ou a noite, inda mais alta,
Com sinos em fogo e, doce mariposa, a Via-Láctea –
O que em teus termos é o paraíso desejado,
O tesouro nunca visto, muito menos ouvido, jamais imaginado.

27.
Não, mas não foi nada disso.
Os solavancos, os rangidos do carro,
A gastura do tempo geram pedidos de trégua
Do coração atolado em sua mágoa –
Não o perigo, o elétrico horror, e além se descobre
Que o apelo da Paixão é mais sensível na oração com vagar.
Outra é a razão, suspeito eu, na medida do fardo
Em sua mente, da turbulência do vento, das investidas dos dragões do mar.

28.
Mas como hei-de... dá-me ali um lugar,
Alcança-me um... Vem preste, imaginação!
Espanta-te esta cena? vê o que está ali a assomar,
Coisa que ela... Ali! o Mestre,
Ipse, o único, o Cristo, o Rei, o Senhor:
Vinha curá-la do transe extremo em que a atirara, afinal!
Age, decide, domina vivos e mortos;
Doma em triunfo o orgulho dela, apressa-te, encerra esse tribunal.

29.
Ah! havia um coração de justo!
Havia olhos de ver!
E interpretar daquela noite o informe susto
E conhecer a quem e o porquê;
Como expressá-lo, senão por Aquele para quem presente e passado,
Céus e terra são a Sua palavra – só Ele a traduz? –
Uma alma ali de Simão Pedro! contra o vendaval
Firme rocha Tarpéia, mas um desabrochado fanal de luz.

30.
Jesus, coração da luz,
Jesus, filho da virgem,
Qual era a festa que se seguia àquela noite
Em que tiveste a glória dessa monja? –
Era a festa da mulher única, mulher imaculada,
Pois assim concebida, assim lhe foi dado conceber-Te,
Só que aqui, em dores-de-coração, nasce um entendimento,
Palavra que de Ti ouviu, e guardou, e foi capaz de pronta proclamar-Te.

31.
Bem, ela possuiu-Te pela dor, pela
Mansidão; mas tem piedade dos outros!
Vai, coração, e sangra em mais amarga veia
Por aqueles sem consolo ou penitência –
Não, não sem consolo: doce-oportuna Providência
Um dedo dela, uma ternura dela, Ó, de leve, delicado, o coração
Da Virgem tanto obedecia, que a retinia – seu cincerro,
Reconduzindo tresmalhadas ovelhas! – então o naufrágio é uma colheita, a procela traz a ti o grão?

32.
Eu Te admiro, Senhor das marés,
Do Dilúvio primevo, do tombar dos anos;
Freio e recuperação dos limites do golfo,
Seu cinturão, seu porto, seus flancos;
Estacando, aplacando o oceano de uma mente agitada;
Fundamento, granito do ser; além, bem além
De todo alcance, Deus entronizado por detrás
Da morte, com soberania oculta, mas atenta, que prevê, mas não intervém.

33.
Misericórdia que atravessa incólume
A vastidão das águas, arca
Para os que o ouvem; para os que o aguardam, um amor que abarca
Mais baixo que a morte e a escuridão.
Veio que alcança os encarcerados, os além-da-oração,
Os espíritos penitentes do último suspiro – extremo alvo seu,
Que o nosso gigante erguido da Paixão que o abateu
O Cristo do Pai compassivo, na tempestade de sua passagem, recolheu.

34.
Arde, pois, recém-nato para o mundo,
Nome de dupla valia
Do céu-atirado, coração-de-carne, na virgem-envolvido,
Milagre-de-chama-em-Maria;
Contado no centro dos três, no trono do trovão!
Não veio em juízo-final, tenebroso, ofuscante;
Veio bondoso, mas imperial, reclamando o que era seu;
Que nos condados baixe uma chuva cintilante, nenhum raio fulminante do Céu.

35.
Senhora, em portas nossas,
Entre nossos escolhos afogada,
Porto-Paraíso da Recompensa, ora por nós nas estradas:
Faz voltar nosso Rei sobre as almas inglesas,
Raiar em nossa treva a fonte-do-dia, aurora em carmesim acesa.
Seja seu reino, pelos séculos, para a Bretanha rara-amada um alumbramento,
Orgulho, rosa, príncipe, herói, pontífice nosso,
Fogo na lareira-caridade de nossos corações, Senhor da cerrada cavalaria de nossos pensamentos.

Fonte: Hopkins, G. M. 1989. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1918.

07 julho 2008

Quando a lua vier tocar-me o rosto

Ana Hatherly

Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo apaga a marca dos teus passos por sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu partiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A velocidade do sangue é tu partiste.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é leito de tu teres partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1965.

06 julho 2008

Mães e filhas

Jane Goodall

[...] Na selva, quase todas as mães cuidam de seus filhotes de modo relativamente eficiente. Mesmo assim, existem nítidas diferenças entre as mães nas técnicas de criação dos filhotes. Seria difícil encontrar duas fêmeas cujas mães as tivessem tratado de forma mais diferente durante seus primeiros anos do que a filha de Flo, Fifi, e a filha de Passion, Pom. Na verdade, Flo e Passion encontram-se nas extremidades opostas de uma escala: a maioria das mães se encaixa em algum ponto entre esses dois extremos.

Fifi teve uma infância despreocupada – uma infância maravilhosa. A velha Flo era uma mãe altamente competente, afetuosa, tolerante, brincalhona e protetora. Figan era parte integral da família quando Fifi estava crescendo, participando de suas brincadeiras quando Flo não estava com vontade e freqüentemente apoiando a irmã mais jovem em suas brigas infantis. Faben, o filho mais velho de Flo, também estava quase sempre por perto. Flo, que era a mais importante entre as fêmeas, quando a conheci, era também muito comunicativa. Passava bastante tempo com os outros membros de sua comunidade e mantinha um relacionamento tranqüilo e amigável com a maioria dos machos adultos. Nesse meio ambiente social, Fifi tornou-se uma criança autoconfiante e positiva.

A infância de Pom, em comparação com a de Fifi, foi terrível. A personalidade de Passion era tão diferente da de Flo quanto a água do vinho. Mesmo quando a conheci, no início dos anos 60, ela já era uma solitária. Não havia nenhuma fêmea que fosse sua companheira íntima, e nas ocasiões em que encontrava-se em grupo com machos adultos seu relacionamento com eles era tipicamente difícil e tenso. Foi uma mãe fria, intolerante e brusca, e raramente brincava com a filha, em particular durante os dois primeiros anos. E Pom, tendo sido o primeiro filhote dela a sobreviver, não tinha irmãs com quem brincar durante as longas horas em que ela e a mãe ficavam sozinhas. Seus primeiros meses foram muito difíceis e ela se tornou uma criança ansiosa e dependente, sempre com medo de que a mãe fosse embora e a deixasse para trás.

Assim, não chega realmente a surpreender que Pom e Fifi tenham reagido de forma diferente aos vários desafios que uma jovem fêmea deve enfrentar ao crescer na selva.
[…]

Fonte: Goodall, J. 1991. Uma janela para a vida. RJ, Jorge Zahar.

05 julho 2008

Jovem flautista


Judith Leyster (1609-1660). Young flute player. 1635.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

04 julho 2008

Hampstead Heath

Manuel Ulacia

Talvez só faça falta
um cambio de luz
na superfície da água,
um olhar
que se cruza com outro olhar,
para deixar para trás,
sem sabê-lo,
um mundo seguro.

Estavas à beira da represa
olhando os diminutos veleiros
quando ele te convidou a entrar no bosque.
E tu sem dizer uma palavra,
ferro ao chamado do ímã
o seguiste até lá dentro.

Quanto sol derramado
entre as verdes frondes,
quanto prazer enquanto tuas pernas
tremiam de medo.

Hoje não recordas nem seu nome nem seu rosto.
Talvez tudo que o tempo tenha deixado impresso
seja aquele odor de tabaco e água de colônia,
que durante quinze anos te acompanhou
por todas as cidades, em nenhuma agora.

Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1989.

03 julho 2008

Cem anos de solidão

Gabriel García Márquez

1.
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de barda rude e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia.
[...]

Fonte: Marques, G. G. s/d [1967] Cem anos de solidão, 34ª edição. RJ, Record.

02 julho 2008

Diagnose

Marcia Lee Anderson

Multiplicamos doenças por prazer,
Inventamos uma necessidade horrível, uma dúvida vergonhosa,
Regalamo-nos na licenciosidade, nutrimo-nos da noite,
Criamos balbúrdia no íntimo – e não saímos.

Por que sairíamos? Despojado de sutis complicações,
Quem poderia olhar o Sol senão com temor?
Este é o nosso refúgio contra a contemplação,
Nosso único refúgio contra o simples e o claro.

Quem irá sair rastejando de sob o escuro
Para ficar indefeso no ar ensolarado?
Não há terror da obliqüidade tão certo
Quanto o mais notável terror da desesperança
De saber como é simples a nossa mais profunda necessidade,
Como é intensa, e como é impossível satisfazê-la.

Fonte: Becker, E. s/d [1973] A negação da morte. RJ, Record.

01 julho 2008

Elegia no. 1

Mauro Mota

Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas
a alma dos gestos e, dos lábios quentes
ainda, as frases pensadas só em certas

tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes

fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

Gesto de desespero e despedida,
para ficares de qualquer maneira
pelos fios castanhos presa à vida.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1952.

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